Era sábado, pouco depois do meio-dia, quando uma chuva avassaladora castigou São Paulo. O dilúvio pegou a população de surpresa, e deixou alguns pedestres desavisados sem proteção, ao abrigo de marquises. Embaixo de uma delas ocorreu o encontro de Adamastor e Augusta. Em comum eles pareciam ter apenas a pobreza. Mas Adamastor ganhava de longe no quesito repugnância. Neste aspecto a Augusta não merecia ser criticada. As roupas de tecido vulgar em tons cinzentos, os cabelos amarrados numa enorme trança, que percorria toda a dimensão das costas, semelhante a uma espinha dorsal, a ausência de perfumes e fragrâncias, e o semblante austero, expressavam bem a personalidade recatada da moça, frequentadora típica de templos evangélicos. Toda a indumentária era muito digna, uma dignidade até excessiva, cuja intenção parecia ser a de catequizar almas desviadas. Já o Adamastor parecia ter, bem... matizes mais profundas. O físico era amuado, não somente pela fraqueza e desnutrição. Existia ali uma postura de cão vira-lata, desses que a gente repele com um simples aceno, para logo retornarem ao virarmos as costas. Vivia impondo, irritantemente, a presença de sua carranca desagradável, de olhos baixos e dissimulados. Não bastasse a feiúra fora do comum, vestia-se andrajosamente e cheirava a gordura velha. A pobreza de Adamastor não inspirava pena, era abjeta por provocar sentimentos cruéis entre os demais. Queriam-no sempre longe, pois ninguém quer sentir desprezo gratuito por alguém, muito menos por um despossuído. Porém, aquele olho baixo, que olhava de esguelha, resvalava a depravação. Augusta sentiu tudo isso de maneira instintiva e logo deu-lhe as costas. Pacientemente, ficou a contemplar a tempestade. Notando a sobriedade impoluta dos gestos de Augusta, Adamastor sentiu-se impelido a se aproximar, e o fazia com água na boca, já antevendo o desprezo ou as injúrias que seriam dirigidas a ele. Não dava para resistir, era como um cachorro diante de um amontoado de ossos lhe atirado na fuça. O prazer que vinha das profundezas. Talvez a última escala da excitação mundana. Dirigiu-lhe o primeiro murmúrio.- Óie... Isso é chuva pra varar dia e noite. A moça fingiu não notar. Nem sequer um tremor. Adamastor deu mais um passo em direção a ela e continuou sua cantilena sem sentido.- Dona, pode olhar pra mim, não sou bicho não, viu!? – choramingou o miserável. Augusta olhou rapidamente sem conseguir disfarçar uma feição desagradável. Respirou fundo e virou-se para ele novamente, desta vez com cara bem mais misericordiosa, tal qual faria um cristão de bem diante de uma figura daquelas. Tornou a contemplar a chuva, por fim. O homem era de fato pobre e vadio, morava num quartinho de um prédio antigo arrasado, no centro da cidade. Vivia de bicos como encanador e eletricista. Tinha pouquíssima instrução. Não havia passado do ensino primário. O resto do aprendizado era fruto dos cachações levados do pai na infância e adolescência, além de andanças entre prostitutas, malucos, freqüentadores de botecos e outros tipos da noite. Apesar da ignorância, brotava em Adamastor uma malícia doentia em certas ocasiões. O desprezo alheio o excitava, mais ainda quando partia de mulher. A carola era o tipo ideal para extrair-lhe tais sensações. Já havia torrado alguns tostões com prostitutas de quinta categoria. Nunca obtivera sexo de outra forma e, geralmente, não era o ato a dois que lhe interessava. Costumava pagar a elas por horas de xingamentos, algumas agressões físicas e outras humilhações boladas na hora. As putas adoravam. Afinal, também sentiam repulsa por Adamastor. Algumas faziam de graça, quando dispunham de tempo extra. Ali naquela marquise, era a chance de descolar uma experiência diferente, vinda de um mundo que não lhe oferecia muitas brechas. Augusta o colocaria em seu lugar reles, pensava o solitário homem.- Dona, a senhora já tem um companheiro?- Não é assunto seu. Por favor, não me incomode.- Ora, mas por quê? Temos tempo de sobra pra prosear, se conhecer melhor...- Não tenho vontade, obrigada. Se continuar... vou embora na chuva mesmo. – Desta vez, Augusta o fulminou com o olhar. Adamastor sorriu molengamente com dentes de gambá velho. Guardou longa pausa e recomeçou:- Nesses dias de friagem, de chuva pinicando nossa cara, dá uma amargura no coração. Nem queira imaginar. Sabe o que serve para acabar com essa agonia? Hein? Hein?- Não sei, não me conte. O senhor está me assustando. Olhe bem, não faço parte da tua laia. Vou gritar! Chamo o guarda! – Augusta fazia ameaças, porém não parecia disposta a correr dali e enfrentar o dilúvio. Estava difícil enxergar qualquer coisa mais à frente. Tudo alagado. Augusta e Adamastor foram obrigados a ficar num cantinho exíguo, ainda não tomado pela enchente. A moça, aos vinte e nove anos de idade, nunca havia estado tão próxima de alguém que a desejasse de maneira explícita. Sentiu um grande temor em dividir intimamente o ar com aquele vagabundo de rua. Já a excitação de Adamastor crescia, não pela proximidade do corpo feminino, e sim pelo nojo despertado em Augusta.- Não chega muito perto!- Mas você não vê? Só sobrou esse cantinho sem água. Temos que ficar bem juntinhos. Vem cá nega, eu te protejo.- Não se enxerga?? Pode recolher essa asa que de mim não vai ter nada!!Já se dava quase por satisfeito o pobre gaiato. Os insultos desferidos por Augusta estavam muito aquém dos habitualmente dirigidos a ele. Porém, estes pertenciam a outra categoria. Partiam de uma jovem impossível de ser sua. Nem mesmo nos mais delirantes sonhos algo assim se consumaria, pensava. Por isso o prazer era mais entorpecente. Noutra ponta, Augusta guardava um semblante reflexivo. Calmo demais até. O breve estado de descontrole se dissipara. Não era o temor de uma ameaça física que lhe desestabilizara. O homenzinho era reles demais para ousar tanto. Sempre fora de fugir cegamente de aproximações como aquela. Normalmente, os homens apresentavam-se como barreira intransponível para a virginal beata. Augusta não chegou a atingir um estado catártico de pensamento, mas pensou surpresa em uma hipótese. Adamastor era miseravelmente feio e inofensivo, apesar de repelente, porém percebera na paupérrima figura um desamparo enorme. O peso intimidatório da presença masculina, sempre vivenciado por ela, inexistia ali. E ainda era possível sentir compaixão. Feito. Abriria a guarda, enfim.- O que quer de mim exatamente?Adamastor parecia supreendido com a pergunta. Permanecia até então plugado em íntimos devaneios. Acordou subitamente, e parecia não entender a razão daquela serenidade no olhar de Augusta. Ficou em dúvida se poderia conseguir alguma vantagem com a mudança no rumo da conversa. Estremeceu. Ela usava o tom de uma assistente social, psicóloga ou coisa assim... Ele então arriscou, sem muita convicção, uma iniciativa.
- Quero comer você.
Ele quase engasgou com a resposta enfática proferida.
- Pois vamos em frente. Mas onde você vai me levar?
- Como assim? Que você tá falando?
- Falei que devíamos procurar um lugar melhor, ou você acha que eu iria me entregar debaixo desta marquise suja...
Adamastor não segurou o impulso e decidiu parar de fingir.
- Ora, mas o que deu em você, dona? Você é alguma mulher da vida e eu não tô sabendo? Tenho dinheiro não... Tô entendendo mais nada... – De tão confuso, ele estava prestes a sumir dali, enfrentando o dilúvio.
- Eu quero o que você quer, senhor – o “senhor” fizera-o arregalar os olhos – Ou será que desistiu? Não faço mais o seu tipo? Desculpe... - Ela falava sério.
Por um instante, Adamastor a achou bonita como as mulheres de cartazes de cerveja. Correu decidido contra o denso véu de chuva. Sumiu logo à frente, como se atravessasse uma catarata. Augusta ficou um pouco desapontada, mas entendeu a fraqueza do pobre homem. Uma vida de privações certamente geraria um comportamento controverso. Mas não seria aquela privação a mais injusta de todas, justamente por ser uma auto-privação? Talvez. Ela se sentiu melancólica com estes pensamentos, mas logo apagou da memória. Apenas um fator é digno de nota: Augusta se tornou uma moça mais desembaraçada desde então. O onipresente Adamastor desapareceu, o que diga-se a verdade, para alívio de muitos. O arrependimento pela recusa à oferta de Augusta custara-lhe o último fiapo de sabor de vida existente. O peso dos maus-tratos, já experimentados, caíam pesadamente de uma só vez. Não era possível tirar qualquer prazer daquilo novamente. Quebrara-se o encanto. Isto, para uma alma tão depravada, era a morte. A única solução seria encontrar Augusta novamente e esta era uma hipótese dificílima de concretizar-se. Numa cidade deste tamanho, é fácil sumir sem deixar vestígios. Para Adamastor não existia mais sobrevida. Então era melhor desaparecer mesmo.
*Ilustração de Ricardo Coimbra
4 comentários:
põe a ilustração aí, vovô.
É só mandar, titio
muito bom, Léo!
adorei!
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