segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Fungos emocionais


Londres, 30 de janeiro de 1969

Max ergue-se na ponta dos pés para tentar localizar alguém em meio ao movimento anormal da rua Savile Row.

- Nicky, aqui! – identifica a moça de casaco pesado que se acotovela entre transeuntes e curiosos.
- Sem beijinho - evita o cumprimento do rapaz - Vai falando.
- Vamos subir.
- Por que essa multidão aqui na porta? Eles estão aí? – arregala os olhos – Max, eles estão?
- Você vai ter que merecer essa informação – ri para a moça, sem ser correspondido.
- Sai, groupie suja! – Nicky afasta uma menina de poncho que obstrui a porta do prédio.

Max puxa Nicky pra dentro do famoso edifício da Apple Records. Abre a porta do elevador e sinaliza para ela entrar.

- Me conta o que tá acontecendo, Max! Você disse que tinha a ver com eles. 
- Calma – aperta o botão do último andar.

Pouco depois o elevador enguiça entre dois andares.

- Ué, parou?
- Parece que sim.
- Por isso não entro em elevador sem ascensorista.
- Nicky, não vou suportar essa situação.
- Que situação? Faz essa merda funcionar, tenho claustrofobia.
- Eu tenho uma surpresa pra você, mas antes queria saber se tudo vai voltar a ser como antes.
- Antes? A gente terminou, já era, esqueceu?
- Você terminou. Eu ando doente, arrasado, sem saber o que houve.
- Não fode! Você é um ciumento psicótico que desconfia até do meu pôster do Ringo.
- O Ringo é a ponta do iceberg. Você vive atrás de todos os roqueiros piolhentos desta ilha.
- Me respeita! Depois pergunta por que foi chutado.
- Você quer que eu morra?
- Seu problema é mental, não físico – empurra o rapaz e aperta o alarme.
- Ninguém vai aparecer. Tá todo mundo no terraço.
- O que tá acontecendo, afinal?
- Eu te digo: minha imunidade baixou e contraí fungos no pé. O médico disse que é depressão – começa a desamarrar os tênis.
- Fungos emocionais? Conte-me mais.
- Começou aqui na sola e agora tá chegando à planta do pé – exibe um dos pés descalços - Não imagina como dói. Ao menos alivia a dor do coração.
- Se é o melhor que pode fazer pra me comover, já era.
- A tristeza é feia, Nicky.
- E também fede!
- Também tenho furúnculos no quadril e ouvidos entupidos, mal escuto.
- Deve ser a natação.
- Meu ouvido fabrica mais cera quando tô angustiado.
- Sua hipocondria não tem limites.
- Não é psicológico. Tô mostrando os efeitos no meu corpo.                                                      
- Foda-se você e suas nojeiras.
- Nicky, minha carcaça tá literalmente apodrecendo.          
- Surreal! Você não quer reatar porque se arrepende, mas por estar coberto de bolor.                                                           
- Meu antídoto é você.
- Chega, maluco, vou gritar.

Max a segura pelo braço.

- Por que o Ringo? 
- Ai, Deus! Porque ele não é estrelinha. Por isso. 
- Você que pensa.
- Além do mais, todos têm um beatle preferido.
- Eu não tenho.
- Tem sim, é o tal do Martin.
- George Martin.
- Ter o produtor como beatle favorito diz muito sobre seu caráter.
- Ele é gênio, é o meu guru.
- Guru? Você é só um auxiliar de técnico de som.
- Mas é graças ao meu emprego que você tá aqui dentro.
- Presa no elevador? Cadê vantagem?
- Se não fosse tão teimosa…
- Peraí, você parou o elevador de propósito?

Max se cala, enquanto um som externo distrai Nicky.

- Tá ouvindo isso? – ilumina-se, tremendo de emoção.
- O quê?
Don`t let me down - aperta o braço do ex-namorado.
- Não é minha intenção.
- É a música, idiota.
- Ah sim.
- Max, eles estão tocando em algum lugar do prédio! Você tem que me levar lá!
- A ideia era essa, mas antes você tinha que me perdoar.
- Faz essa porra funcionar, caralho!

Max aperta botões, mexe na grade da porta, mas nada.

- Não entendo, não era pra ficar parado tanto tempo.
- Get Back! Get Back!
- Não adianta.
- É a música, porra!
- Enguiçou de verdade, desculpa.
- Eu não acredito! – escorre pela parede até o chão, dramática.
- Calma – tenta afagá-la.
- Não chega perto!
- Isso aqui tá me lembrando a situação do fab four – pronuncia fab four com ironia explícita.
- O que eles têm a ver com essa doença que a gente vive?
- Eles também estão doentes, Nicky.
- Você me enganou.
- Pra mim a causa era justa.
- Pois é, somos dois interesseiros.
- Feito o John e o Paul. Entendeu?
- Do que você tá falando, seu lunático?
- Eles só estão nessa pela grana. A casa caiu faz tempo.
- Não fala bobagem, essa parceria é pra sempre.
- Também achei que a nossa fosse. Agora a gente tá aqui assim, unidos pelo interesse. O elevador é o nosso Fab Four.
- Nossa, que inteligente sua analogia – desdenha.
- O tempo me dará razão.
- A diferença é que os Beatles estão presos em um sonho bom, enquanto eu tô presa em um conto mal escrito.
O pesadelo deles é estarem juntos.
Para de falar isso, por favor, ou meu mundo vai deixar de fazer sentido.
- Ok, então não falo.

Após vinte minutos aprisionados no que Max, em momento de perspicácia duvidosa, definiu com “submarino de mágoa”, sons de engrenagens e cordas pouco lubrificadas trazem alívio. 

- Tá subindo! Tá subindo! – Nicky vibra
- Até que enfim! Nunca uma viagem de elevador durou tanto.

Nicky cantarola The long and winding road e os dois riem. Por um momento dividem uma expectativa boa. O elevador chega, finalmente.

- E agora, como faz pra chegar ao terraço? - pergunta Nicky, ofegante de ansiedade.
- Tem que subir a escada e…
- Ok, eu acho! – abre a grade do elevador com vitalidade, mas é barrada por alguém.
- Vai aonde, moça? – pergunta o sujeito fardado – Senhor, achei quem tava impedindo o acesso.

Um policial mais velho se aproxima sacudindo a cabeça com ar de reprovação.

- O senhor pode nos dar licença? Temos autorização pra subir. Ele trabalha aqui – aponta para Max.
- Vocês descem com a gente - conduz os dois de volta ao elevador.
- Descer? Por quê?
- Tentar barrar a justiça é crime, moça.
- Como assim barrar, seu policial? – pergunta Max, timidamente.
- Acha que é mole subir tantos andares de escada?
- Ninguém é preso por ficar em elevador enguiçado.
- Não é prisão, rapaz. Por enquanto só vão nos explicar umas coisinhas.
- Mas os Beatles estão no terraço. Não faz isso com a gente! – implora Nicky.
- Estavam. Já mandamos parar com a desordem.
- Max, pelo amor de Deus – choraminga – quero vê-los.
- Acho que não vamos ter outra chance.
- Eles vão acabar mesmo? – aterroriza-se Nicky, indo da desilusão à ira em um segundo  – Eu vou pegar aquela japa de porrada!
- Calma, moça. Você não tá em posição de ameaçar ninguém – intervém o policial velho.
- Seu covarde! Vai lá prender o Lennon. Quero ver!
- É o que eles querem – responde o policial - Não vou dar o gostinho.
- Nicky – susurra para a ex-namorada - Vai me dar outra chance?
- Max, a gente tá sendo preso, percebeu? Olha o embaraço.

A porta se abre e os dois são escoltados em meio a uma pequena multidão. Ao ver um dos policiais se distanciar com Nicky, Max grita, quase em pânico:

- Ei, nao pode me dizer?
- O sonho acabou! – grita Nicky de volta.

Os dois são colocados em viaturas separadas.