sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Eu, Croquete

Podia dizer que minha vida foi em vão. Afinal, aqui estou há quase 24 horas, deteriorado e sem perspectiva alguma de ser ingerido. Inclusive, sinto a consciência me fugir, à medida que salmonelas consomem meu interior. Apesar de estar azedo, posso, pelo menos, oferecer um testemunho sobre o que vivi. Talvez assim a minha trajetória não se torne uma inutilidade completa.

Ainda jovem, na manhã de ontem, quando eu era um croquete fresquinho e vistoso, compartilhei esperanças com outros colegas de estufa. Pura diversão. Não tínhamos muitos objetivos na vida. Podíamos ser comparados a uma turma de calouros, que deseja se enturmar e experimentar o máximo de sensações possíveis. Afinal, nossa existência é tão efêmera... então tudo deveria ser encarado como uma agradável novidade. Mas não foi bem assim.

Fizeram parte de minha geração algumas coxinhas, sensuais e douradas, cientes do papel de prestígio que desempenham nas refeições cotidianas, tinha também uns poucos quibes, inatingíveis como príncipes exilados, uma meia dúzia de bauruzinhos, tipos leves e descompromissados, além de outros irmãos croquetes. Irmãos? Bem... não chega a tanto. A consciência de nossas origens nebulosas gerava desconfianças mútuas. Na outra ponta da estufa, instalaram-se algumas salsichas empanadas, totalmente desordeiras. Tais tipos me provocavam certo desconforto. Não era preconceito, mas sabe como é!? Às vezes o santo não bate. Aliás, preconceito mesmo, quem sentiu na pele fui eu. Como disse antes, os croquetes não possuem uma receita bem definida. Não sabemos muito sobre nossas origens, ou seja, os ingredientes que nos constituem são pra lá de suspeitos. Repletos de contra-indicações, eu diria. Carnes e temperos obscuros podem ocasionar problemas sérios para quem os consome. O pessoal lá da estufa foi percebendo isso aos poucos. Viramos os mestiços nocivos, os mulatos da turma. Sabe amigo, esse ambiente não é muito diferente da vida na sociedade humana. Nos habituamos às chegadas e partidas, à insegurança quanto ao futuro, aos amores frustrados e também à segregação social. E para completar, quando um croquete chega ao crepúsculo de sua existência, ninguém nos reverencia ou pede conselhos. Querem mais é nos empurrar para a boca de algum cão vira-lata, o que seria uma completa desonra. Deixemos isso para lá por enquanto.

Gostaria de relembrar algo bom, ou quase isso. Se hoje sou imune ao amor, no passado, já experimentei seu contágio. Mais precisamente ontem, ao meio-dia. Uma coxinha enorme, suculenta e crocante, chegou sem pedir licença à nossa estufa. Era a maior do grupo. Uma explosão de nutrição! Deus! Cabia um frango inteiro ali dentro! Perdoem a exaltação. É que nessa época sentia uma carência terrível. Mesmo tendo aquela multidão de croquetes ao meu redor. Sei lá, era como se não falássemos a mesma língua, sabe?! E para piorar, éramos evitados pelos outros salgados. Mas com aquela coxinha foi bem diferente. Ficamos inseparáveis. Trocávamos impressões sobre tudo. Ela era muito espirituosa. Vivia fazendo piadas com a barriga do cozinheiro, criticando de maneira mordaz os fregueses que passavam ali pelo nosso boteco, enfim, era uma coxinha à frente do tempo dela. Mas sabe aquela máxima melancólica dos homens, que diz que a felicidade dura pouco?! Pois é, comprovei a teoria. Sempre comentávamos entre gargalhadas o ar blasé e afrescalhado dos sanduíches naturais. Ela me matava de rir quando os imitava. Realmente, não dava para levá-los a sério. Ainda bem que viviam isolados lá no freezer. Afinal, eles não agüentariam um segundo da vida na estufa, amigo. Aqui a chapa esquenta, tá ligado? Pois então... Acabei me estrepando. De tanto implicar, minha amiga se apaixonou perdidamente por um deles. Viviam se acenando, ou fazendo mímicas apaixonadas. De uma hora para outra eu me tornei um confidente. Meu peito ardia ao ouvi-la dirigir palavras melosas ao tal sanduichezinho. Ó injustiça! Tive que me afastar de minha rotunda paixão. Pior é que ela mal percebeu, tão atraída que estava pelo meu frio oponente. E foi à distância que vi o suplício terminar de forma dramática. Todo salgado feito ao meio-dia possui vida curtíssima. Essas pobres almas são vítimas de uma convenção alimentar mundana, conhecida como almoço.

Um gordo suado a devorou sem dó. Fechei os olhos para não ver a cena, enquanto os demais habitantes da estufa se alvoroçavam com a perda repentina. Horas depois, o “Romeu” afrescalhado de minha amada foi consumido por uma madame. Ele também não devia estar se sentindo bem, pois a madame começou a empolar ali mesmo, intoxicada pela amargura do sujeitinho. Depois dessa tragédia, procurei evitar enlaces amorosos. Fui além. Intencionalmente, me descuidei da aparência a fim de desencorajar qualquer investida feminina.

Minha posição não permite enxergar muita coisa. Apenas pessoas que transitam de um lado para o outro pela calçada. Nunca um tipo interessante. Também pudera. O meu boteco fica pessimamente localizado. Por aqui só passam putas e tipos grosseiros. E sempre encostam a maldita barriga no balcão. Não percebem o quanto isso dificulta minha única distração externa: observar o movimento do puteiro em frente. Nem se animem muito, meus amigos. Só tem bagaço. Aliás, ontem à noite, prestes a completar doze horas de vida, comecei a me identificar com uma delas. Não me entendam mal, por favor. A pobrezinha já tinha certa idade. Era rejeitada até mesmo por homens vulgares, de gostos duvidosos. Sim, acabei me identificando! Afinal, sou evitado por fregueses de péssima reputação alimentar. Ela pelo menos pode fumar um cigarrinho e se afogar em bebida barata... já eu fico aqui nessa escuridão.

Opa, abriu! Nossa! Que dia lindo! Não é hora para lamentos. O fim está próximo e ninguém me ouve nesta choça. Tão logo saia a primeira fritada, darei adeus a esse mundo. Queria dedicar o sol dessa manhã a todos os amigos salgados com quem convivi. Todos engolidos e digeridos, quiçá excretados, ao longo dessas quase vinte e quatro horas. Um brinde a vocês!

Sinto vontade de cantar. Here comes the sun, tchutchururu, here comes the sun. Deus, essas salmonelas começam a afetar meu juízo. Por obséquio, joguem-me logo na lixeira. Não suporto mais ficar nesta estufa vazia, repleta de recordações.

Quem é esse aí que apareceu? Coitado. É tão velho que anda auxiliado por uma enfermeira. Aonde ela vai? Ao banheiro? Hehe. Eu não iria lá se fosse ela. Por que o velhote me encara dessa maneira? O que você quer? Você só pode estar de brincadeira...

- Pois não, senhor?
- Me vê esse croquetinho aqui, meu filho.
- Vixe! Isso taí desde ontem. Péra um pouquinho que já vão sair os salgados novos.
- Tem problema não, meu filho. Se vivi até hoje, não há de ser um croquetinho a me matar. Manda aí.
- O senhor que sabe.

Não acredito. O que este assassino vai fazer? Ele tá me pegando. Ih rapaz, ele tá falando sério mesmo. Vai me colocar na bandejinha e tudo. Não faça isso! Eu tenho uma população inteira de motivos para não ser servido. Pare! Não quero cometer um assassinato nos meus derradeiros momentos de vida. Seria uma mancha na minha trajetória. Malditos celerados! Tenho que evitar isto! Nem que seja meu último ato de nobreza.

- Opa! Desculpa! Caiu no chão.
- O danado parece que rolou sozinho...
- Isso mesmo. O senhor também reparou?
- Reparei que você é muito estabanado, meu filho.
- Sinto muito. Este vai pro cachorro.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O aniversário de Talitinha

Logo no primeiro dia de trabalho na produtora, o designer Tulio se espantou com a cor dos olhos de Talitinha. Tom violeta enfumaçado. Realmente um deslumbre. Além de linda, a pequenina era gentil e atenciosa. Todas as manhãs o cumprimentava com um sorriso, chamando-o pelo nome. Isto aquecia as manhãs friorentas do rapaz.

Apesar da Talitinha namorar um japonês viciado em games, Túlio tinha esperança de atrair a afeição da ninfeta. Era comum ela queixar-se, para quem quisesse ouvir, da indiferença do amado. Olhos como aqueles não podiam ser possuídos por um japa infantilóide, pensava. Era hora de vencer a timidez para desbancá-lo. A oportunidade parecia chegar naquela tarde.

De costas em sua mesa na sala de criação, Túlio escutou Talitinha, faceira como ela só, lançar um convite sapeca para Davi e Ricardo, dois simpáticos roteiristas, adeptos do humor pasteurizado. Sujeitos que falam bastante, mesmo sem ter qualquer assunto em mente, e riem das próprias piadas. Enfim, caras de prestígio.

- Meninos, vou comemorar meu aniversário hoje na Augusta, nove e meia. Quero ver vocês lá. – Os olhinhos faiscavam como nunca.
- Na Augusta?! Tá mal intencionada né!? Onde vai ser?
- Então... Queria uma balada diferente, sabe!? Nada dessas festinhas com DJ, patricinha, caretice... Ai to cansada de tudo sempre igual - Talitinha choramingava graciosamente - Marquei com uns amigos no Coco Bongo. É um daqueles puteirinhos de lá. Vai ser doido! Uma amiga minha comemorou aniversário num lugar assim e disse que a galera rachou o bico à noite inteira.
Túlio ficou paralisado, enquanto Ricardo e Davi pareciam desconcertados, mas só por alguns instantes.
- Hahahaha... Que isso, Ta? Zuada essa sua idéia! Minha religião não permite, ok? – Fez cu doce Davi.
Ricardo foi direto ao ponto. Como faria Túlio, se estivesse participando da conversa:
- Que seu namorado acha dessa ideia?
- Ai, seus caretões! Ele nem vai. O Ken detesta meus amigos. Vou jantar com ele e com a minha família antes. Gente, não é para espalhar, ok? Tô chamando só aqueles que eu sei que vão meeeesmo.
- E você acha que a gente tem cara de putanheiro né? – Davi insistia no cu doce.
Cheio de ansiedade, Túlio ouviu mais algumas gracinhas dos amigos, respostas com falso encabulamento de Talitinha e por fim a menina despediu-se sem convidá-lo para a farra. O rapaz encarou os amigos sem disfarçar a decepção. Nele, este desalento adquiria certa comicidade, logo percebida por Ricardo.

- Que cara é essa? Tá com fome? Vamos lá na padaria.
Conversa vem, conversa vai, Túlio enfim pôde exprimir seu lamento. Mastigando amargamente um ovo cozido empanado, afirmou que não iria comparecer à festa.
- Vocês viram que eu nem fui convidado. Passou por mim como se eu fosse um fantasma. O que eu vou fazer lá!? – argumentou com os olhos cheios de lágrimas.
- Larga de ser bundão, Túlio. Ela pediu pra falar com os mais chegados. Você também pode ir. A não ser que seja crente. Aí é outra história.

Túlio resignou-se. Não teve o prazer de ser convidado por Talitinha, mas não podia deixar de vê-la radiante naquele dia especial. Pensou nos olhinhos violetas faiscantes. Recuperado da esnobada, Túlio agora buscava nos amigos um pouco mais de estímulo.
- Que horas vocês vão pra lá?
- Não sei. Vou sair daqui, passar em casa, tomar um banho e vou. – garantiu Davi.
- Também vou fazer isso. – completou Ricardo, aparentando desinteresse.
- Bom, eu tenho que terminar umas coisas. Se ficar tarde eu vou direto. Vocês vão com certeza, né?
A insegurança de Túlio era minimizada por Davi e Ricardo, que admiravam nele o lado profissional, mas socialmente consideravam-no inferior. Como uma criança medrosa. De fato, o rapaz não fazia questão de dissimular a própria insegurança. Era constrangedora sua transparência.

Nove e quinze da noite. Túlio conformou-se em ir direto, sem banho e sem a carona dos amigos. Não queria perder mais tempo. No caminho, pensava num gracejo ou frase de impacto para dizer a Talitinha quando a visse. Um presente? Não. Seria demais para quem sequer fora convidado formalmente.
O pacato rapaz não estava habituado a programas mais sórdidos. No máximo, um dos insossos barzinhos próximos à produtora. A sujeira da Rua Augusta, assim como os tipos extravagantes que a habitam, impressionaram Túlio. Já não sentia confiança para gracejar.

Túlio mirava os letreiros em neón buscando o local indicado por Talitinha. Enquanto isso, plantados nas portas dos puteiros, nordestinos de rostos encovados, metidos em ternos baratos, lhe faziam propostas indecorosas: “E aí meu, tá a fim de enfornar o robalo?” “Dez reais, duas brejas e um bando de safadas doidas para dar o chibiu! Topa não, excelência?” Por fim, Túlio achou o pardieiro indicado. Tão banal como os outros. Pior, na placa onde deveria se ler Coco Bongo, só se lia Coco go, pois algumas luzes do letreiro estavam queimadas. Talitinha perdeu mesmo o juízo, pensava. A recepção foi semelhante às anteriores: “Bucetada na cara, campeão?”. A proposta afugentou o rapaz, que seguiu em frente, sem coragem de entrar no pardieiro. Surpreso com a própria atitude, desconfiou ser ele tão careta e patético como o namorado japa, que Talitinha dispensou para celebrar em meio a cafetões, traficantes, putas e “bucetadas na cara”.

Cruzou mais duas vezes com o porteiro do Coco Bongo até finalmente resolver entrar.
- Ô meu amigo, entra logo. Tenha medo não. Parece até que é tu quem vai dar o rabo. Assina a comanda com a tia ali e é só correr para o abraço.
Ainda pouco convencido, Túlio foi lançado para dentro. Desnorteado com a penumbra e o som altíssimo, o rapaz descobriu que ao deixar quinze reais na porta, tinha direito a duas Bavarias chocas, servidas de trás do balcão por um digno senhor de bigodes brancos.

Encostado no balcão, Túlio tentou avistar alguém do trabalho. Nada. Apenas gatos pingados desconhecidos. Uma música cafona berrava no alto falante. Passou pela sua cabeça a possibilidade de tudo aquilo ser um trote. Ninguém chegaria ali e ele voltaria para casa com cara de idiota. Decidiu bebericar sua Bavaria e aguardar um pouco. Não deu trela para o assédio das putas flácidas que cruzavam o ambiente. Em seu campo de visão, só o velho de bigodes, encarando-o tristemente. Cada minuto era um tormento.
Dois caras sentaram-se ao lado de Túlio. Eram até simpáticos. Queriam fazê-lo participar da conversa. Túlio sorriu amarelo e continuou a assistir o velho enxugar taças. Mesmo assim eles se apresentaram. Um deles chamava-se Robson e o outro era seu primo Claudemir. A simpatia da dupla acabou vencendo a resistência do rapaz. Após cinco cervejas, os três conversavam animadamente sobre sacanagem e futebol. Túlio falava pouco, mas conseguia se distrair.

Entretidos pela conversa, eles não notaram a entrada de um pequeno e animado grupo. Quando Túlio olhou para o fundo do bar, Talitinha estava se sentando em uma mesa, acompanhada por três caras de trejeitos homossexuais, e uma menina de cabelos preto e roxo. Nenhum rosto conhecido. Nem sinal de Davi e Ricardo. O rapaz pretendia juntar-se a eles, porém sentiu uma súbita covardia. O grupo estava plenamente integrado. A chegada de um novo elemento, pacato e certinho como ele, traria desconforto geral, presumiu. A paranóia o conteve. Ao virar-se novamente para o balcão, tentando não ser notado por Talitinha, deparou-se com três copos de cachaça à sua frente.

- Vira aí, mano. Cortesia nossa! – Oferecia o sorridente Robson.
- Ih, vocês viram lá no fundo a dondoquinha toda se achando? Novinha assim e já colando o velcro. Mas eu passo a vara mesmo assim, mano!

Túlio incomodava-se com os comentários sobre seu xodó, mas a preocupação maior era não ser visto. A pinga começou a subir a cabeça. Foi então que Robson introduziu uma nova participante na conversa.

- Aí, chegado, essa aqui é a Glorinha. Hehehe! Ela tem nome de professorinha de quarta série, tá ligado? Esse é o meu amigo... Como cê chama mesmo, mano?
- Túlio.
- Oi, Túlio. Primeira vez aqui? – perguntou Glorinha, toda dengosa.
Túlio não entendeu bem a pergunta. Um pouco pelo barulho e um pouco em função de seu estado alcoólico.
- Não, não. Eu já transei antes.

Os dois amigos começaram a gargalhar. Glorinha, timidamente, mostrou um dentinho podre. Túlio, com medo de chamar a atenção de Talitinha, afundou-se dentro do casaco. Mas nem era preciso, pois a aniversariante e sua turma extravagante gritavam e gargalhavam sem notar o universo ao redor. O velho do balcão resmungava solitariamente contra a presença de “viados” em um ambiente “sadio”.

- Deixa de ser trouxa, Túlio. Ninguém aqui quer saber das tuas trepadas. O assunto é a Glorinha! – Robson envolveu a puta com os braços - Não é meu biju?! To precisando de umas lições! Quer ser minha professorinha?
- Diz aí quanto é o showzinho? – perguntou Claudemir, o mais objetivo dos três.
- Não faço show. Se quiser vamos lá pro quarto. Oitenta reais a hora, gato.
- Ahh... Mas eu preciso ver o material primeiro.
Glorinha hesitou um pouco. Porém o movimento estava fraquíssimo e ela acabou topando.
- Ok meninos, mas depois quero fazer o serviço completo. Eu danço pra vocês por trinta. Sentem nas cadeiras ali atrás que eu já volto – Retirou-se apressada.
- Opa! Vamos lá!
Robson e Claudemir entraram por uma porta lateral, logo na entrada do bar. Era um ambiente privativo. Túlio, indiferente às negociações, foi puxado pelos dois. No trajeto, pode olhar novamente para a mesa de Talitinha e gelou ao vê-la encarando-o. Mas daquela distância, e em meio à penumbra, era pouco provável que fosse reconhecido, tranqulizou-se.

Já sentado entre Robson e Claudemir, Túlio demorou a entender que Glorinha dançaria sem roupa para eles.
- Entendi. E eu posso encostar a mão?
- Claro, porra! Isso aqui não é o balé do Municipal! Você vai ver logo.

Glorinha entrou trajando calcinha e sutiã pretos. O corpo inteiro lambuzado de um óleo com fragrância de uva. A morena tinha pernas longas e finas, mas era bem fornida onde interessava: na bunda. A luz fraca ajudava a delinear as reluzentes curvas de Glorinha.

- Aí, meu velho! É disso que eu to falando. Isso é que é show de verdade.
Começou a tocar uma balada do Red Hot Chili Peppers. Devia ser a música de trabalho de Glorinha. Túlio sentia-se entusiasmado com a possibilidade de acariciar o corpo da morena. Ela iniciou a dança roçando a bunda nos joelhos de Claudemir, que envolveu os dois peitos da puta com as mãos. Ela desvencilhou-se para tirar o sutiã e a calcinha. Túlio ouvia Robson e seu primo rirem e gritarem asneiras, mas não conseguia distinguir o que diziam. Estava com os olhos vidrados no corpo à sua frente. Após se esfregar em Robson, Glorinha voltou a insinuar-se para Claudemir. Túlio sentiu-se ignorado pela puta, que não lhe dava chance de tirar uma lasca sequer. Quando ela voltou ao centro para, de costas, abaixar o tórax até tocar os joelhos com as mãos, Túlio perdeu as estribeiras. Avançou como um cão faminto em direção à suculenta bunda. Mas aconteceu uma cena grotesca. Ao tentar puxá-la pela cintura, a mão do rapaz escorregou para entre as oleosas nádegas. Glorinha no susto virou-se, e a unha do dedo médio do rapaz cravou em uma área bastante sensível da puta. O grito emitido foi de dor e revolta.

- Aiii! Enfiou o dedo no meu cu!? Faz isso na sua mãe, filho da puta! – Enquanto xingava, Glorinha dava safanões sobre a cabeça de Túlio, que defendia-se como podia. Não eram estas as carícias que ele esperava obter da moça.
- Calma, calma, foi sem querer, minha flor! – De nada adiantaram os panos quentes de Robson.
Glorinha estava muito irritada e ficou ainda mais quando Túlio tentou se explicar:
- Esta minha unha aqui tá um pouco grande, eu uso pra tocar violão e... – O rapaz nem conseguiu completar.
O segurança já pegou-o pelos ombros para expulsá-lo. Túlio ainda ouviu uma última ofensa de Glorinha:
- Esse aí não gosta de mulher! Nem sei o que veio fazer aqui.

Os três rapazes foram levados ao caixa para quitarem as contas e saírem ilesos de uma confusão maior. Robson e Claudemir não pareciam contrariados. Pelo contrário, riam da situação, enquanto Túlio notava, aliviado, que Talitinha havia ido embora.

- Nossa, meu! Corta essa unha antes de enfiar o dedo em alguém, ok? Senão você vai acabar pagando só pra levar porrada. Hahahahaha! – caçoava Robson.
- Será que o Zé do Caixão já fez fio terra em alguém? - Indagou Claudemir.

Expulsos do Coco Bongo, Robson e Claudemir viraram as costas para Túlio e se enfurnaram no puteiro vizinho. Sem vontade de prolongar aquela jornada deprimente, o infeliz designer manteve-se pensativo por uns instantes. Parado na calçada, ouviu chamarem seu nome.

- Túlio!?
- Ta? Oi... Tudo bem?
- O que você ta fazendo aqui? Vi você sair daí de dentro.
Túlio atrapalhou-se com a resposta:
- Eu... Eu... Eu costumo vir aqui... à noite. E você?
- Vocêêê?? Nossa, nem parece... – Passou pelo rosto de Talitinha uma sombra de decepção, que Túlio notou – Menino, eu tava aí dentro com uns amigos. Mas achei muito chato. Pensei que fosse mais animado. Aliás, tenho que ir, o povo tá me esperando. Juízo, hein!?
- Eu... Eu...
- Ih, fica tranqüilo! Não vou espalhar que você freqüenta esse lugar. Se encontrar o Davi e o Ricardo, diz que eles são uns furões. Beijinho, tchau! – A garota atravessou a rua correndo.

Bêbado, envergonhado, e com o estômago ardendo, Túlio procurou por algum dinheiro no bolso. Percebeu que as ofensas de Glorinha custaram-lhe o montante reservado para o ônibus da volta. Juntando moedas deu para comprar um croquete no boteco. Constatou que o quitude estava azedo. Não esperava outra coisa mesmo.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Honra

Na placa lia-se: Pastel de Feira da Elvira, delícia da zona leste! Ficava no alto de um trailer triste, estacionado em uma praça coberta de lixo.
Três amigos, de uns vinte e poucos de idade, chegavam famintos à frente do balcão. Os dois mais novos estavam bastante excitados, enquanto o maior e mais velho olhava ao redor preocupado. Dona Elvira atendeu com doçura.
- Oi, meninos! Pastel e caldo de cana?
- Vê um de pizza, tia – pediu Gilvan, o grandão desconfiado.
- Pra mim um de carne – escolheu Paulo César, que ostentava
um topete salpicado de dourado.
- Eu quero de palmito – engrossou a voz James, o menor,
mais inquieto, e portador de um pequeno pacote embrulhado com jornal.
Gilvan e Paulo esqueceram a tensão por alguns instantes e se
entreolharam divertidos.
- Meu, olha que bichona... vê se homem de verdade pede pastel de palmito – provocou Paulo.
James, suscetível como era, não deixou barato.
- Então tá, PC!? Quem era a bichona que tava se borrando agora
há pouco? Pensa que eu não percebi? Tô mentindo, Gilvan?
Gilvan não dava bola para as provocações dos garotos. Preferia observar apreensivo a aproximação de dois PMs. Um deles tinha aparência estúpida, compensada por músculos intimidantes. Já o outro, calvo e de semblante enérgico, suscitava recordações desagradáveis no rapaz. O trauma de dormir na prisão ainda estava vivo.
O PM calvo, morador do bairro, tipo correto e metido a guardião de sua comunidade, retribuiu o olhar desconfiado de Gilvan. Quis deixar claro que o reconhecia. Discretamente, ele alertou o colega de farda.
- Aquele é ex-detento. Tem que ficar sempre de olho
O PM forte não deu bola. Preferiu estudar o comportamento de James e PC, que comiam pastel e papeavam desembaraçadamente.
Gilvan voltou-se para os companheiros. A tensão o fazia suar na testa. O comportamento espalhafatoso dos colegas só piorava as coisas.
- Se não fosse eu, não passávamos o cara, mano. Sabe por
quê? Porque eu sou novo, mas tenho sangue nos olhos! – Gabava-se James, para terror dos dois amigos.
- Cala a boca, moleque! – Sussurrou Paulo, já ciente dos olhares
incômodos.
Os policiais fitavam Gilvan e seus amigos ostensivamente. James enfim percebeu. Então cortou o discurso abruptamente, levou o copo de garapa à boca e o virou de uma só vez. A perturbação dos três ficou evidente.
- Estes caras aprontaram. – comentou consigo mesmo o PM calvo, enquanto mastigava calmamente um pastel de calabreza.
Gilvan se atrapalhou um pouco e deixou cair metade de seu pastel no chão. Na mesma hora tratou de apressar os outros.
- Acabaram aí, né? Vambora.
PC e James assentiram e pagaram Dona Elvira. Ao notar, estarrecido, que James deixara o pequeno pacote repousando sobre o balcão, Gilvan dirigiu-lhe um olhar furioso. Prontamente, o caçula do trio pegou o pacote e saiu andando rápido, acompanhado pelos amigos.
O policial calvo cutucou o colega, que permanecia indiferente à partida dos três.
- Vamos seguir os moleques, Tavares.
- Esquenta não, tenente. Deixa ir... vamos comer mais um.
- Vem comendo.
O subordinado, não vendo alternativa, deixou o dinheiro no balcão, sorriu para Dona Elvira e apressou-se.
Os rapazes discutiam. Gilvan era o mais nervoso. Queria encher James de pancada, mas no íntimo, considerava-o isento de culpa. Aquela situação poderia ter sido evitada, pensava. Pois não precisava de dois cúmplices. A covardia o levou a cooptar os amigos para a missão. Achou que a ajuda deles agilizaria o processo. Serviço de equipe: limpo e rápido. Agora, Gilvan olhava para trás e não via ninguém. Ia recuperando a calma. Porém, o alívio durou pouco, pois sentiu o sangue gelar quando os policiais apontaram na esquina.
- Podem andar sem medo. Não tem treta, galera. É só intimidação. – Instruiu o pouco convicto líder do grupo.
- Não tem treta é o caralho, mano! O pacote tá comigo! O que eu
faço com isto? Engulo? – Vociferou James.
- Vamos ter que correr, Gilvan!
- Espera!
Gilvan perdeu o comando. No fim da rua, PC correu para um lado e James atirou o pacote no lixo antes de zarpar pela direção contrária.
- No lixo não, animal! – Suplicou o desesperado líder.
Os policiais aceleraram o passo. Gilvan hesitou em pegar o pacote na lixeira, aturdido pela possibilidade de chamar a atenção dos perseguidores. Optou por correr sem olhar para trás, ciente da roubada em que se metera. Ao cruzar a avenida, duas quadras à frente, sentia-se angustiado pelo arrependimento. Inconformado com a burrice feita. Os policiais abandonaram a perseguição, mas fatalmente vasculhariam o lixo. Entregar de bandeja uma prova como aquela selaria a tragédia dos três, previa.
- Abre logo, Tavares! Não é para ficar cheirando!
- Calma, tenente, pode não ser este o pacote...
- Claro que é, porra! Pensa que eu não reparei lá na pastelaria?
- Tá cheio de durex colado no papel. Peraí.... Pronto! Olha aí, os caras se complicam por causa de uma mixaria de bagu... Epa!
- Que isso?
- Sei lá... não é bagulho. Parece osso para cachorro ou...
- Dois dedos!
- Hã?
- É sim, meu! Olha a unha preta! Tem até um anelzinho num deles. Não falei que eles tinham feito merda? Vamos cercar o bairro, senão eles desaparecem.
- Vou acionar as viaturas. Será que tem defunto?
- Porra, Tavares! Eles acharam isto na rua, por acaso? Chama logo aí!
PC e James estavam em casa, preparando a fuga. Enchiam as respectivas mochilas com pertences quando a polícia chegou e os levou à delegacia do bairro. Gilvan não fora encontrado. O tenente previa dificuldades para capturá-lo.
- Estes aí são peixes miúdos. Sem malandragem. O grandão é fichado. Liderou a gangue com certeza. Vai resistir, podem escrever.
Para surpresa do tenente, dos policiais e dos companheiros de fiasco, Gilvan se apresentou espontaneamente à delegacia pouco tempo depois. Nada disse ao entrar na sala do delegado. Simplesmente abaixou a cabeça como um condenado que aguarda a sentença. Era a expressão absoluta da derrota. Tal postura indignou os amigos, até então apegados à experiência e maturidade do líder como pontos à favor. Os dois mais jovens estavam firmes no intuito de negar qualquer evidência sobre o delito. Foram separados em três salas. O tenente calvo ficou por conta de Gilvan.
PC e James sofreram com a truculência dos inquisidores. Apanharam , tiveram as famílias ameaçadas e acabaram contanto o que sabiam. Mas o detalhe fundamental, só Gilvan poderia revelar.
O tenente calvo empreendeu um método menos agressivo. Sabia do trauma de Gilvan. Buscou ganhar-lhe a confiança. Descobriu o nome da vítima: Tadeu Gonçalves Pereira, assassinado a socos, chutes e pauladas.
- Esse cara só arrumava confusão. Devia saber que pra poder mexer com o que é dos outros, e ainda tirar onda, tinha que se garantir. Ele vivia dando mole por aí bêbado, doidão, desarmado... tretou com quem não devia, desrespeitou a mina de um cara que não deixa passar.
- E aí vocês carimbaram ele. Mas e os dedos?
- Ah, isso aí é coisa de honra. Aquele dedinho com o anel vai virar
troféu. Pra impor respeito, tenente.
- Mas e o outro dedo, caralho?
- Primeiro arrancamos o errado, quando vimos, tivemos que cerrar o certo para levar junto.
- Entendi, Gilvan. Fez bem em contar. Fica tranqüilo. Você tá
seguro aqui. Só me fala o nome do cara.
- Tenente. Eu me fudi uma vez, fui preso, minha mãe adoeceu por
causa disso. Sei que ela não vai me receber de volta se eu sair daqui de novo. Coloquei o PC e o James na canoa furada... Depois de tudo, o que eu posso dizer? Da minha boca não sai mais nenhum nome. Também tenho minha honra.
- Há! Vai tomar no cu, seu bosta! Os quatro tão nessa. E o figurão é o que tá mais fudido. – o tenente esforçou-se para manter a calma - Vamos fazer o seguinte, me leva até o terreno onde vocês desovaram o cara, depois conversamos melhor.
A noite daquele 25 de maio era hostil. Ventos gelados e baixa umidade castigavam o trio que invadia um terreno baldio por um buraco aberto no muro.
O PM Jucilei, encarregado de cavar, cravou a pá no local indicado por Gilvan. Nem foi preciso ir muito fundo para achar o corpo. O homem da pá deteve-se por um instante, deixando o defunto parcialmente enterrado. Inconformado com o silêncio do jovem homicida, o tenente apelava para ameaças.
- Você escolhe: Fala o nome do cara ou vai dormir junto com esse infeliz aí.
Diante de outra negativa de Gilvan, o tenente socou-lhe as costas com brutalidade. O rapaz foi parar sobre o cadáver semi enterrado. Tentou levantar-se e levou mais um pisão. Não levantou novamente. Ficou deitado sobre o corpo da vítima. O PM Jucilei, habituado aos métodos mais sutis do tenente, encarou a cena surpreendido. O nojo que sentia do odor exalado pelo morto chamava-lhe menos a atenção que a postura truculenta do sempre exemplar companheiro de farda.
- Estava tentando te dar uma chance. Sei que você só entra nessas porque é burro. Aprende uma coisa: miserável não precisa de honra! Sobreviver já é lucro.
O tenente não abriu a boca no retorno à delegacia. O cheiro de gás metano, entranhado nas roupas de Gilvan, empesteava o interior da viatura. Jucilei dirigia sem disfarçar a careta repulsiva. Próximo à delegacia, não agüentou e vomitou pela janela, com o carro ainda andando.
Gilvan foi jogado em uma cela. Os colegas de infortúnio tiveram destino semelhante, porém estariam de volta às suas casas em período mais breve que o líder do bando.
O fedor de morte tomou conta da prisão e martirizou ainda mais os detentos. Isso, pelo menos, garantiu o isolamento desejado por Gilvan. Algo cristalino tomava forma na consciência do rapaz. Sentia-se serenamente digno por ter confessado. Esta resolução purificava-lhe, ao menos por uma noite. Difícil seria buscar motivação para sobreviver às próximas.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Alvorada dos Lordes

A confusão teve início quando a Fonseca Empreedimentos Imobiliários ergueu o luxuoso condomínio Alvorada dos Lordes. Era o pulo do gato da emergente empresa. Os ricaços interessados em conforto, lazer, segurança, e outros clichês habitacionais, ficaram logo entusiasmados. Várias famílias arremataram seus imóveis dos sonhos ainda na planta. Entre os compradores estavam muitos freqüentadores de um mesmo círculo social; portanto, tinham relações amistosas, de admiração mútua, ou inveja mútua, a familiarizá-los.

Uma das felizes compradoras, a solitária socialite Geórgia Maldonado, estava exultante com a nova morada. Geórgia não precisava, e não queria, trabalhar. Tinha alma de artista, diziam seus bajuladores. O marido, executivo de multinacional, lobista, entre outras atividades nebulosas, vivia a viajar. Foi no Alvorada que a dócil madame reaqueceu suas amizades. Gostava de receber para o chá ou visitar outras influentes matriarcas. Comentavam sobre cultura, casamentos malfadados, fortunas dilapidadas, violência urbana. Apenas um boletim geral sem profundidade alguma. Afinal, não desejavam se exaltar, apenas ouvir o som das próprias vozes.

Passados alguns meses, Geórgia, auto proclamada "artesã do lar", decidiu empreender a primeira reforma. Ou "intervenção artística", como ela mesma definia. Na verdade, não considerava sua sala ampla o bastante. Sentia-se um pouco “emparedada”. Queria derrubar a parede do escritório, jamais usado pelo marido, para aumentar o espaço da sala. A missão foi confiada ao pedreiro Lindomar, "um verdadeiro Midas", conhecido entre as famílias do pedaço. Após um rápido estudo do local, o pedreiro tratou de voltar na manhã seguinte, com as ferramentas em mãos, pronto para um dinheirinho fácil.

Uma marretada, duas, três... e foi ruindo a grossa parede. Mas tinha um negócio estranho ali no meio. O pedreiro ficou lívido, desnorteou-se, não podia continuar o serviço, foi chamar a madame. Para assustar Lindomar daquele jeito, boa coisa não podia ser. Antes de mostrar o achado, gastou algum tempo prevenindo Geórgia sobre a visão que teria. Impossível não se chocar com o pequenino corpo, quase intacto, mumificado por uma camada de reboco. A pele adquiriu o tom cinzento de uma estátua. Ali estava uma menina de no máximo nove anos. Lindomar se benzeu, tirou o boné em respeito, enquanto a madame apenas arqueou uma das sobrancelhas, aparentando mais descontentamento do que susto. Nesse dia começaram os transtornos de Geórgia. Ela até tentou ser prática ao chamar os bombeiros de imediato. Naturalmente, a situação foi além.

Percebendo o tamanho da merda, os bombeiros acionaram a polícia. Após averiguação, dois policiais interditaram a obra e chamaram a perícia. Bastou isto para indispor a proprietária com as autoridades. Desejava apenas que levassem dali a “coisa” para Lindomar continuar a derrubar a parede. Depois de resistir, a madame acabou colaborando. Coitada, ao tentar evitar um escândalo, acabou fazendo exatamente o inverso com sua falta de calma. O entra e sai no apartamento já gerava reações calorosas dos outros condôminos.

Após dormir em um hotel, lá estava ela, na delegacia, prestando esclarecimentos. Irritadíssima, ignorava as perguntas e afirmava não ter a mínima idéia de como a menina entrara ali. O delegado, muito respeitoso, a tranqüilizou. Não desconfiava dela, afinal, presumia que o crime fora praticado por um ou mais operários envolvidos na construção do prédio. O encarregado saboreava cada detalhe do caso, antevendo a fama que a sinistra ocorrência poderia lhe render.

De volta ao Alvorada, a madame se deparou com alguns moradores reunidos no saguão. Logo a cercaram. Uns se sentiam no direito de fazer qualquer pergunta, outros se solidarizavam de forma pouco convincente, enquanto algumas amigas tentavam, inutilmente, protegê-la do assédio. O rebuliço chamou a atenção dos repórteres de plantão à frente do prédio. Eles também a cercaram.

- A senhora tem idéia de como aquela criança foi parar lá?
- A senhora pretende mudar-se para facilitar as investigações?
Provocada, a madame se enfureceu:
- Esta é a minha casa! Não me importunem! Os intrusos aqui são
vocês!

Os flashes foram disparados no momento de descontrole da madame. Dizem que a socialite é um doce de pessoa, mas a tensão a deixa fora de si. Aos pontapés, furou o bloqueio e entrou no elevador. Na porta de seu apartamento, um novo ataque de fúria. Uma fita isolava a área, não permitindo a aproximação. Geórgia arrancou a fita, enquanto dirigia impropérios aos quatro cantos, e foi entrando. O policial em guarda ameaçou detê-la, mas conteve-se ao perceber de quem se tratava. Rapidamente, dois peritos a abordaram com toda a delicadeza possível. Disseram que o trabalho deles se encerrara. O corpo fora removido para um laboratório. Naquele momento, segundo eles, a identidade da criança já era conhecida. A madame não se acalmou com as explicações. Só pensava em retomar sua calma rotina.

- Não quero saber quem é ou quem foi, só peço que desocupem minha
casa imediatamente! Onde estão meus ajudantes? Judite! Alencar!
- Eles foram dispensados, senhora... não podiam ficar aqui
enquanto...
- Mas o que é isto?! Eu já dei folga para eles na semana passada. Quem vocês pensam que são para determinar as regras de funcionamento de minha casa?

Os agentes da polícia se entreolharam desanimados. Naquela altura a mídia já ligara os pontos, então decidiram abrir o jogo. A suspeita deles racaía sobre uma série de desaparecimentos ocorridos alguns meses antes. Onze crianças de uma comunidade pobre vizinha sumiram sem deixar vestígios. A polícia acreditava que o corpo achado pertencia a uma delas. Geórgia continuava indiferente. Aí veio a parte difícil para ela:

-Veja bem, senhora, trabalhamos com a possibilidade de outros corpos estarem emparedados neste imóvel. Isso significa interdição total. Lamento.

Os jornais do dia seguinte destacavam o caso. A menina encontrada, Marcilene dos Santos, de nove anos, era mesmo uma das crianças procuradas. O laudo indicou que a pequena sofrera estupro antes de ser asfixiada. A indignação de Geórgia também mereceu destaque. Foi noticiada a recusa dela em deixar o apartamento após a interdição do local. para constrangimento geral, a polícia precisou removê-la à força, acrescentavam alguns veículos. De saída do imóvel, a madame revelou a alguns repórteres que procuraria um advogado para ajudá-la a combater o “abuso policial”. A intensão de dificultar as investigações arrasou com a reputação de Geórgia junto à opinião pública, principalmente entre a população de baixa renda.

Alguns jornais popularescos estamparam insinuações grosseiras sobre a socialite. Um deles continha a manchete apelativa: O POVO versus GEÓRGIA MALDONADO, ao lado da foto da mãe de Marcilene, bastante abatida. Na matéria, a triste senhora convocava outras mães como ela, saudosas de seus filhos desaparecidos, a lutar, apesar de "gente poderosa" tentar abafar o caso. Dali em diante, Geórgia passou a ser evitada por todas as famílias do Alvorada. No mesmo dia, outro tablóide foi além. Publicou uma montagem grotesca da madame, sentada em um trono de ossos, sob a alcunha de “Madame Morte do Alvorada”. Apesar de nenhum deles acusá-la, ou sequer suspeitar do envolvimento dela, a tratavam como cúmplice do crime.

No começo, Geórgia pouco se intimidou com os comentários. Todos os dias tentava invadir seu próprio apartamento a fim de expulsar policiais e impedir na marra qualquer dano. Esforço em vão. Uma semana depois, Geórgia sequer conseguia entrar com seu carro na rua. Mães, parentes e amigos dos desaparecidos, além de repórteres, curiosos, vendedores ambulantes e populares de toda espécie faziam vigília diante do Alvorada. A madame era obstinada, mas preservava algum juízo. Não pisou mais lá.

Este período foi difícil também para os outros moradores do condomínio. As famílias, que se mudaram para lá motivadas pela tranqüilidade e o conforto, agora só pensavam em procurar um novo lar. Aos investidores, que compraram imóveis a fim de capitalizações futuras, restou assistir atônitos à enorme desvalorização de seus apartamentos. Ninguém mais se convidava para o chá. As janelas viviam fechadas.

A Construtora Fonseca Empreendimentos Imobiliários passou a sofrer com todo tipo de suspeita. A princípio, a empresa foi acusada pela população, arbitrariamente é claro, de ter contratado assassinos para realizar a obra. Isso não chegava a ser uma acusação séria. Mais tarde, porém, brotaram denúncias concretas contra os sócios da Fonseca. Todos estavam envolvidos em licitações fraudulentas, superfaturamento, entre outras atividades corruptas. Foi o fim.

Quem experimentava um sabor doce nessa história eram os policiais. Da noite para o dia, a comunidade carente que sempre os confrontou passou a aplaudir a iniciativa de investigar os envolvidos na obra, e de buscar dentro do Alvorada os corpos das crianças. Aliás, como esperado, só no apartamento de Geórgia foram achados mais três cadáveres emparedados: Um menino e duas meninas, também estuprados antes de morrerem. A notícia trouxe pânico para os condôminos, temerosos pela integridade de seus lares. O povão ficou inflamado. Queriam justiça, suas crianças de volta. A polícia, farejando violência, formou um cordão para proteger os moradores do edifício. Contudo, os demais apartamentos não escaparam da interdição.

Foi nessa época que o marido de Geórgia chegou da Europa. Discreto, tratou de providenciar um refúgio para ele e a mulher. Alugou um apartamento, bem menor e mais modesto. A grana pesada gasta com a compra do antigo imóvel dos sonhos, aliada ao efeito demolidor da crise financeira do momento, não deixou outra opção. A esposa resistiu, entrou em depressão, e acabou vendo seu oásis de tranquilidade se desmanchar feito miragem.

O Alvorada tinha se transformado em um grande e escandaloso mausoléu.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Caranguejo

Juiz de Fora - MG, 1986.
Dentro do sacolejante ônibus escolar, Natanael, de sete anos, era um dos mais miúdos. E o jeito tímido e assustadiço tornava a vida bem complicada. Em meio a tanta intimidação, tinha uma pessoa que conseguia descontraí-lo. Era um garoto ruivinho, chamado Fabrício, maior entre os maiores, e que estranhamente não se aproveitava do tamanho para obter vantagens. Pelo contrário, era divertido e amistoso. Comportamento intrigante para os garotos menores, que lamentavam com inveja o desperdício de tais atributos físicos. “Eu mastigaria o mundo se tivesse este tamanho”, pensava um deles. Mas Natanael simpatizava com Fabrício. Sobretudo, porque ele conseguia superar em infantilidade os menores. O “gigante” lembrava um personagem de desenho animado, afetado e histriônico.
Quando o ruivinho saltava da poltrona e intimava Natanael para uma “lutinha”, toda a timidez era esquecida. Nesse embate, ao qual sequer encostavam-se, mas simulavam movimentos ameaçadores, os garotos escolhiam identidades imaginárias. Fabrício sempre adotava a mesma: um leão. Após o primeiro rugido, Natanael corria em direção ao grande felino e parava à sua frente movimentando-se lateralmente. Ele também não costumava mudar seu personagem. Ao contrário dos meninos pequenos, que se identificavam com grandes guerreiros ou criaturas mortíferas, Natanael curtia assumir a imagem de um caranguejo: um animal que, embora não pertença ao grupo dos mais perigosos, pode ser traiçoeiro com suas ágeis pinças e seu vagar de trajetória indefinida. Formulava mais ou menos assim seu grau de periculosidade. E aquele confronto chegava às raias do tédio absoluto para quem prestasse alguma atenção. Fabrício rugia e dava patadas no ar como se afastasse moscas. Na verdade, o vaidoso leão mostrava-se muito mais preocupado com a própria imagem do que com seu oponente. Natanael agitava freneticamente “suas pinças” de forma a construir uma barreira intransponível a qualquer predador. A “lutinha” terminava sempre da mesma maneira: O leão vaidoso virava-se, esquecendo-se do caranguejo, e permanecia rugindo de forma autista. Natanael pensava no perigo que era dar as costas assim para o mais perigoso dos crustáceos, mas não ligava. Naquele dia, sentia cansaço e enjoo, intensificado a cada instante pelas manobras estabanadas da motorista, tia Margarete. Recolheu-se à última poltrona para relaxar e acabou deixando a merendeira para trás, no meio do corredor. Sua casa ainda estava distante. Desanimou completamente.
O despertar em meio à escuridão foi medonho. Natanael encarou assustado a fileira de poltronas na penumbra. A luz neón das placas de rua tremulavam dentro do ônibus. Parecia um pesadelo estranho. Beliscou-se. Espichou a cabeça para olhar pela janela e viu uma cena curiosa: uma mulher enorme aliviava-se em um poste, porém o fazia de pé. A tal virou-se e enxergou o olhar atento de Natanael. “Oi, que cê tá olhando? Quer ver como o meu é maior que o seu?” Dito isto, a estranha mostrou o pau, para espanto do menino, que escondeu-se.
De longe vinha o som de um animado pagode. Podia ouvir a batida e alguns gritos entusiasmados. Lembrou-se de um pesadelo recorrente: era noite e homens com horrendas máscaras tribais dançavam à volta de seu corpo amarrado. Quando ele acordava, muito assustado, os sons dos tambores ainda ecoavam em sua mente. Naquele momento, pensou estar preso em mais um de seus pesadelos.
Chorar de nada ia adiantar. Seria melhor sair do ônibus e pedir a alguém que o levasse para casa. Correu até a porta da frente e, para seu terror, ela estava trancada. Esmurrou-a desesperado, gritou por ajuda durante alguns minutos, e nada. A rua estava deserta e o som de seu desespero era abafado pela batucada. Natanael ficou desorientado, jamais experimentara tamanho horror. Como toda criança medrosa, ele temia, mais do que qualquer outra coisa na vida, se perder dos pais. Sem perceber, caminhou até o fundo do ônibus. De lá, em meio às sombras, ouviu a porta da frente abrir-se com um tranco. Emitiu um gemido surdo.
Teve imenso alívio ao ver tia Margarete subir as escadas, porém deteve-se. Atrás dela vinha engatado um moço bem mais jovem sem camisa. Pararam próximo às primeiras poltronas. Naquele instante, o menino sentiu umidecer a parte de trás de sua bermuda. Em pânico, havia se cagado.
O casal estava em um belo amasso. Aquilo tudo era novidade para Natanael. Nunca tinha visto uma teta ao vivo, apesar daquela nem ser das melhores de se ver. Era murcha, caída e com mamilos tipo medalhão. Tia Margarete tentava conter, sem muita convicção, as ávidas mãos do rapaz. “Calma, Guto! Vão ver a gente aqui dentro! Abaixa! Fica no chão, vai!” Então o Guto abaixou o calção e ficou pelado. Em seguida, ele a derrubou no chão. Dava para ver só uma silhueta indefinida dos dois até tia Margarete erguer-se, sentada sobre o rapaz, iluminada feito um arco íris pelas luzes da rua.
Natanael sentia vergonha da sua condição de cagado, que o impedia de ensaiar um pedido de ajuda. Falaria com ela, que poderia rir dele, pensava. Ou pediria ajuda ao cara, um desconhecido que poderia fazer troça pior. A real personalidade de Natanael, covarde e ao mesmo tempo orgulhosa, se manifestava com força. Ele voltaria a sentir tais sensações muitas vezes ao longo da vida. Infelizmente.
Parado no fundo do ônibus, em meio à escuridão, o menino tinha os olhos mais acostumados com a pouca luz. Debaixo de uma poltrona, pouco à frente do casal, conseguiu reconhecer sua merendeira, tombada e esquecida. Levantou depressa. Não podia perder mais uma delas. Já estava na terceira. E o ano mal começara. Sua mãe já o ameaçava com a possibilidade dele levar o lanche dentro de uma sacola de supermercado, caso voltasse a perder merendeiras. Em um instante, esta passou a ser a principal preocupação de Natanael, a ponto de aproximar-se resoluto de tia Margarete, medonha com as tetas balançando de baixo para cima. Ia pegar a merendeira e pedir para lhe levarem de volta à sua casa, depois que terminassem o que estavam fazendo, claro. Podia receber um safanão da fogosa motorista por surpreendê-la sem roupa, mas era preciso agir, pensou.
O menino se esgueirava de cócoras, em direção à merendeira, quando ouviu Tia Margarete comentar: “Aff... Que cheiro de merda é esse?”. “Deve estar vindo lá de fora! Continua aí, porra”, impacientou-se o tal do Guto. Ao ouvir o diálogo, Natanael ficou paralisado no meio do caminho. Foi quando se fez um grande alarido. Alguém chutava a porta do ônibus. Tia Margarete percebeu, tarde demais, que não a tinha trancado.
“Te peguei, cachorrona! Foi para isso que eu comprei esse ônibus? Foi pra tu ficar pagando de puta dentro dela, sua vagabunda?!” Este foi o trecho mais ameno da gritaria iniciada pelo homenzinho de cabeça chata, cuja aparição não era prevista. Natanael percebeu a gravidade do rolo. Tia Margarete urrava feito uma louca, xingando e desculpando-se ao mesmo tempo. O Guto continuou no chão, calado, tentando misturar-se às sombras. O homenzinho então puxou o cabelo da tia Margarete, pedindo-lhe “silêncio, sua vaca”. “O que vai fazer agora? Me matar? Nunca foi homem de verdade! Eu sei da travecada com que tu anda!”. O homenzinho perdeu de vez o controle. Puxou uma faca e a colocou no pescoço dela. Aí o Guto resolveu se mexer. Tentou sair, de quatro, pela porta da frente, mas foi interrompido. Dava para perceber desde o início que o marido chifrado não seria capaz de atentar contra a mulher e, talvez por isso, cravou impiedosamente a faca nas costas do rapazinho fujão. Guto mugiu profundamente. Começou a chorar de dor e nervoso. O homenzinho o atirou para o chão do ônibus novamente. “Tá achando que vai picar a mula assim seu filha da puta?” O corno deu duas bicudas no corpo caído do rapaz.
Natanael avançou novamente e já estava no meio do corredor. Aproveitou a confusão para tentar reaver a merendeira. Porém, uma lingua negra se arrastou em direção à ele. Era o sangue que escorria do corpo de Guto. Natanael olhou com nojo para as próprias mãos, ensopadas de vermelho, mas alcançou o objeto desejado. Sentiu-se mais seguro a partir daquele momento.
Na frente, a gritaria continuava. “Olha esta sangueira, seu cabeça oca dos infernos!”. “Calaboca, que tu tá no lucro de não ser o teu sangue aí no chão”. “Dessa vez você vai para a cadeia e eu não vou fazer na... Putamerda! O que o garoto tá fazendo aqui?” Tia Margarete encheu-se de cólera ao ver o vulto de Natanael agachado ao lado do corpo de Guto. “Responde para mim, seu pivete vagabundo!” Em desespero, o ferido agarrou a perna do garoto, pedindo, "pelo amor de Deus", que lhe prestasse algum socorro. Com uma mão ensanguentada segurando a merendeira e tendo a barra da calça agarrada pelo miserável, Natanael ficou como estátua. Tia Margarete não o reconheceu. E agora?, perguntava-se. Até que o nordestino resolveu intervir. “Vocês não gritem com a criança não, seus desalmados! O coitado tá assustado com a sem vergonhice de vocês.” Dito isto, o corno puxou Natanael pelo braço. O menino não conseguia balbuciar nada, tamanho o susto. Na passagem, a ensandecida motorista ainda disparou: “Foi você que dedurou para ele! Não foi moleque?” Depois da intimidação, levou uma coronhada e foi parar em cima do Guto. Manchada de sangue, ficou em choque. O corno saiu porta afora levando Natanael. Ao olhar para trás e perceber que a mulher ficara cuidando do ferido, não teve dúvida, trancou a porta por fora. Isto provocou novos protestos da traidora. Da rua, porém, os gritos eram engolfados pelo som do pagode da rua de cima, que agora estava em seu clímax.
“Onde você mora, bichinho?”. Natanael só conseguiu falar alguma coisa quando já estava dentro da brasília velha do homenzinho. Foi tratado com muita docilidade; e a calma dele contrastava muito com a histeria de minutos antes. Para o menino, estar cagado dentro do carro não era nada, visto que o motorista cheirava a cueca suja. Não era a mais agradável das atmosferas ali dentro.
Natanael indicou sua casa e foi deixado na porta após despedida apressada do motorista. “Diz para sua mãe que tu não teve culpa de nada. Dorme bem, garoto”. Quando a preocupadíssima mãe irrompeu na porta, a barulheira da brasília ainda ecoava. Ensaiou uma bronca, mas procurou acalmar-se. “Não faça mais isto com sua mãe! O que te fizeram?”. “Eu dormi... acabei fazendo nas calças... não conta pra ninguém”. Natanael foi dormir após um demorado banho. Estava com a bunda assada. Durante a noite, sentiu uma excitação boa. Pensava na melhor maneira de contar aquela história maluca para os meninos do ônibus. Era todo auto-confiança. Não seria mais um caranguejo nas lutinhas, poderia escolher um personagem mais importante para si.
No dia seguinte, o primo mal-humorado de Natanael o levou de carro até a escola. Foi assim até a mãe do menino contratar outro ônibus escolar. A decepção foi grande para o revitalizado garoto, principalmente após constatar que o novo ônibus era frequentado por figuras hostis e mais amedrontadoras. O pequeno afundou-se novamente em sua timidez sufocante e por lá ficou durante toda a infância.

terça-feira, 31 de março de 2009

A marquise






Era sábado, pouco depois do meio-dia, quando uma chuva avassaladora castigou São Paulo. O dilúvio pegou a população de surpresa, e deixou alguns pedestres desavisados sem proteção, ao abrigo de marquises. Embaixo de uma delas ocorreu o encontro de Adamastor e Augusta. Em comum eles pareciam ter apenas a pobreza. Mas Adamastor ganhava de longe no quesito repugnância. Neste aspecto a Augusta não merecia ser criticada. As roupas de tecido vulgar em tons cinzentos, os cabelos amarrados numa enorme trança, que percorria toda a dimensão das costas, semelhante a uma espinha dorsal, a ausência de perfumes e fragrâncias, e o semblante austero, expressavam bem a personalidade recatada da moça, frequentadora típica de templos evangélicos. Toda a indumentária era muito digna, uma dignidade até excessiva, cuja intenção parecia ser a de catequizar almas desviadas. Já o Adamastor parecia ter, bem... matizes mais profundas. O físico era amuado, não somente pela fraqueza e desnutrição. Existia ali uma postura de cão vira-lata, desses que a gente repele com um simples aceno, para logo retornarem ao virarmos as costas. Vivia impondo, irritantemente, a presença de sua carranca desagradável, de olhos baixos e dissimulados. Não bastasse a feiúra fora do comum, vestia-se andrajosamente e cheirava a gordura velha. A pobreza de Adamastor não inspirava pena, era abjeta por provocar sentimentos cruéis entre os demais. Queriam-no sempre longe, pois ninguém quer sentir desprezo gratuito por alguém, muito menos por um despossuído. Porém, aquele olho baixo, que olhava de esguelha, resvalava a depravação. Augusta sentiu tudo isso de maneira instintiva e logo deu-lhe as costas. Pacientemente, ficou a contemplar a tempestade. Notando a sobriedade impoluta dos gestos de Augusta, Adamastor sentiu-se impelido a se aproximar, e o fazia com água na boca, já antevendo o desprezo ou as injúrias que seriam dirigidas a ele. Não dava para resistir, era como um cachorro diante de um amontoado de ossos lhe atirado na fuça. O prazer que vinha das profundezas. Talvez a última escala da excitação mundana. Dirigiu-lhe o primeiro murmúrio.- Óie... Isso é chuva pra varar dia e noite. A moça fingiu não notar. Nem sequer um tremor. Adamastor deu mais um passo em direção a ela e continuou sua cantilena sem sentido.- Dona, pode olhar pra mim, não sou bicho não, viu!? – choramingou o miserável. Augusta olhou rapidamente sem conseguir disfarçar uma feição desagradável. Respirou fundo e virou-se para ele novamente, desta vez com cara bem mais misericordiosa, tal qual faria um cristão de bem diante de uma figura daquelas. Tornou a contemplar a chuva, por fim. O homem era de fato pobre e vadio, morava num quartinho de um prédio antigo arrasado, no centro da cidade. Vivia de bicos como encanador e eletricista. Tinha pouquíssima instrução. Não havia passado do ensino primário. O resto do aprendizado era fruto dos cachações levados do pai na infância e adolescência, além de andanças entre prostitutas, malucos, freqüentadores de botecos e outros tipos da noite. Apesar da ignorância, brotava em Adamastor uma malícia doentia em certas ocasiões. O desprezo alheio o excitava, mais ainda quando partia de mulher. A carola era o tipo ideal para extrair-lhe tais sensações. Já havia torrado alguns tostões com prostitutas de quinta categoria. Nunca obtivera sexo de outra forma e, geralmente, não era o ato a dois que lhe interessava. Costumava pagar a elas por horas de xingamentos, algumas agressões físicas e outras humilhações boladas na hora. As putas adoravam. Afinal, também sentiam repulsa por Adamastor. Algumas faziam de graça, quando dispunham de tempo extra. Ali naquela marquise, era a chance de descolar uma experiência diferente, vinda de um mundo que não lhe oferecia muitas brechas. Augusta o colocaria em seu lugar reles, pensava o solitário homem.- Dona, a senhora já tem um companheiro?- Não é assunto seu. Por favor, não me incomode.- Ora, mas por quê? Temos tempo de sobra pra prosear, se conhecer melhor...- Não tenho vontade, obrigada. Se continuar... vou embora na chuva mesmo. – Desta vez, Augusta o fulminou com o olhar. Adamastor sorriu molengamente com dentes de gambá velho. Guardou longa pausa e recomeçou:- Nesses dias de friagem, de chuva pinicando nossa cara, dá uma amargura no coração. Nem queira imaginar. Sabe o que serve para acabar com essa agonia? Hein? Hein?- Não sei, não me conte. O senhor está me assustando. Olhe bem, não faço parte da tua laia. Vou gritar! Chamo o guarda! – Augusta fazia ameaças, porém não parecia disposta a correr dali e enfrentar o dilúvio. Estava difícil enxergar qualquer coisa mais à frente. Tudo alagado. Augusta e Adamastor foram obrigados a ficar num cantinho exíguo, ainda não tomado pela enchente. A moça, aos vinte e nove anos de idade, nunca havia estado tão próxima de alguém que a desejasse de maneira explícita. Sentiu um grande temor em dividir intimamente o ar com aquele vagabundo de rua. Já a excitação de Adamastor crescia, não pela proximidade do corpo feminino, e sim pelo nojo despertado em Augusta.- Não chega muito perto!- Mas você não vê? Só sobrou esse cantinho sem água. Temos que ficar bem juntinhos. Vem cá nega, eu te protejo.- Não se enxerga?? Pode recolher essa asa que de mim não vai ter nada!!Já se dava quase por satisfeito o pobre gaiato. Os insultos desferidos por Augusta estavam muito aquém dos habitualmente dirigidos a ele. Porém, estes pertenciam a outra categoria. Partiam de uma jovem impossível de ser sua. Nem mesmo nos mais delirantes sonhos algo assim se consumaria, pensava. Por isso o prazer era mais entorpecente. Noutra ponta, Augusta guardava um semblante reflexivo. Calmo demais até. O breve estado de descontrole se dissipara. Não era o temor de uma ameaça física que lhe desestabilizara. O homenzinho era reles demais para ousar tanto. Sempre fora de fugir cegamente de aproximações como aquela. Normalmente, os homens apresentavam-se como barreira intransponível para a virginal beata. Augusta não chegou a atingir um estado catártico de pensamento, mas pensou surpresa em uma hipótese. Adamastor era miseravelmente feio e inofensivo, apesar de repelente, porém percebera na paupérrima figura um desamparo enorme. O peso intimidatório da presença masculina, sempre vivenciado por ela, inexistia ali. E ainda era possível sentir compaixão. Feito. Abriria a guarda, enfim.- O que quer de mim exatamente?Adamastor parecia supreendido com a pergunta. Permanecia até então plugado em íntimos devaneios. Acordou subitamente, e parecia não entender a razão daquela serenidade no olhar de Augusta. Ficou em dúvida se poderia conseguir alguma vantagem com a mudança no rumo da conversa. Estremeceu. Ela usava o tom de uma assistente social, psicóloga ou coisa assim... Ele então arriscou, sem muita convicção, uma iniciativa.
- Quero comer você.
Ele quase engasgou com a resposta enfática proferida.
- Pois vamos em frente. Mas onde você vai me levar?
- Como assim? Que você tá falando?
- Falei que devíamos procurar um lugar melhor, ou você acha que eu iria me entregar debaixo desta marquise suja...
Adamastor não segurou o impulso e decidiu parar de fingir.
- Ora, mas o que deu em você, dona? Você é alguma mulher da vida e eu não tô sabendo? Tenho dinheiro não... Tô entendendo mais nada... – De tão confuso, ele estava prestes a sumir dali, enfrentando o dilúvio.
- Eu quero o que você quer, senhor – o “senhor” fizera-o arregalar os olhos – Ou será que desistiu? Não faço mais o seu tipo? Desculpe... - Ela falava sério.
Por um instante, Adamastor a achou bonita como as mulheres de cartazes de cerveja. Correu decidido contra o denso véu de chuva. Sumiu logo à frente, como se atravessasse uma catarata. Augusta ficou um pouco desapontada, mas entendeu a fraqueza do pobre homem. Uma vida de privações certamente geraria um comportamento controverso. Mas não seria aquela privação a mais injusta de todas, justamente por ser uma auto-privação? Talvez. Ela se sentiu melancólica com estes pensamentos, mas logo apagou da memória. Apenas um fator é digno de nota: Augusta se tornou uma moça mais desembaraçada desde então. O onipresente Adamastor desapareceu, o que diga-se a verdade, para alívio de muitos. O arrependimento pela recusa à oferta de Augusta custara-lhe o último fiapo de sabor de vida existente. O peso dos maus-tratos, já experimentados, caíam pesadamente de uma só vez. Não era possível tirar qualquer prazer daquilo novamente. Quebrara-se o encanto. Isto, para uma alma tão depravada, era a morte. A única solução seria encontrar Augusta novamente e esta era uma hipótese dificílima de concretizar-se. Numa cidade deste tamanho, é fácil sumir sem deixar vestígios. Para Adamastor não existia mais sobrevida. Então era melhor desaparecer mesmo.


*Ilustração de Ricardo Coimbra