quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Projeção astral


- Fiquei te esperando ontem.
- Tive insônia.
- Dai, você só vem me ver quando não tem nada melhor.
- Para com isso, Chico.
- É o que parece.
- Cara, a gente sai do corpo pra explorar além dos limites da realidade, ter contato com o novo, com o desconhecido.
- Não me trata feito um iniciante.
- E mesmo assim quer que eu te encontre toda noite neste mirante?
- Podemos marcar em outros lugares também. Ou então…
- Então o quê?
- Se conhecer de verdade.
- Te falei que saí de um relacionamento agora. Acho cedo pra dar esse passo.
- Dai, não é um pedido de casamento. Só quero te ver no mundo físico, te tocar.
- Não é divertido assim? Mais espírito, menos carne.
- Me fala onde mora. Seu bairro, pelo menos.
- O que você quer se chama “transar”.
- E por que não?
- Chico, por acaso você consegue sentir seu pênis agora?
- O que tem a ver?
- Estamos em uma forma evoluída de consciência. Pra que estragar?
- Porque a consciência só ampliou a minha seca.
- Valorize o oásis de segurança e tranquilidade que tem aqui.
- Mas é lá que eu vivo e me sinto solitário.
- Respeite o meu momento.
- Se é assim, prefiro continuar com sonhos eróticos ao invés de viagens conscientes.
- É isso que importa pra você?
- Isso também. Quero conhecer gente aqui e tirar a cueca no mundo físico. É pedir demais?
- Caiu sua máscara, farsante!
- Você não tá me levando a sério.
- E se rolasse algo sério no mundo físico? Ia ser aqui e lá? Me sentiria meio sufocada.
- Bom, não ou sim, só quero poder confiar em você.
- Chico, você tem o dom da projeção consciente e estraga tudo com essa ansiedade.
- Ansiedade? Dois meses que voamos juntos.
- E daí?
- Você desperdiça nossa afinidade.
- Não reclama. Preferia que seu corpo astral ainda estivesse boiando inerte igual ao de uma vaca?
- Talvez sim. Não teria essa frustração.
- Tá vendo aquela pomba lá no asfalto, atravessando a rua?
- Claro, a gnose também me dá uma supervisão.
- É uma pergunta retórica. Só quis dizer que ela tem o céu todo pra ela, mas prefere chafurdar na sarjeta e no asfalto quente.
- Tá me comparando?
- Sim, você tá na fase pomba.
- Ah, pronto.
- Olha, NÃO é NÃO, seja nesta dimensão ou na outra.
- Você tem medo de não corresponder?
- Como assim?
- No Tinder a gente vê umas meninas lindas, aí vai ver ao vivo e…
- Tá insinuando que minha aparência espiritual não corresponde à minha imagem real?
- Ué, sei lá.
- Mas que autoestima da porra a sua.
- Essa névoa daqui atrapalha um pouco a visão.
- Desculpa, da próxima vez eu uso o aplicativo de maquiagem pra melhorar minha cara.
- Tudo bem, eu gosto da sua silhueta.
- Você não entendeu nada. Aqui é exatamente o contrário do Tinder.
- Perdão, eu não sou tão elevado quanto você.
- Imaturo mesmo. Como chegou a esse estágio pensando assim?
- Entrei pelo sistema de cotas.
- Cota pra boy lixo, né?
- Exatamente.
- Parece que nem aqui estamos livres desse “humor elevado”.
- O politicamente incorreto não faz sucesso no plano astral?
- Chico, em quem você votou?
- Isso vem ao caso?
- Agora vem.
- Bolsomito, sua feminazi. Haha!
- Misericórdia.
- É brincadeira. Daiane, volta aqui! Droga.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Placenta


- Alô?!
- Boa tarde, a senhora Juliana, por favor?!
- Pode falar.
- Juliana, a senhora se inscreveu no programa de placentofagia do Hospital Santa Joana?
- Sim, tava ótima, obrigada.
- A sua placenta se encontra pronta para a retirada.
- Como assim? Eu já retirei. Estamos com o bebê em casa desde a semana passada.
- Houve uma confusão com os rótulos dos recipientes. A placenta que a senhora levou pertence a outra gestante, que agora solicita a entrega do material.
- Oi? Você é louca?
- Como podemos proceder?
- Proceder? Moça, eu e meu marido comemos a placenta de uma estranha com shimeji e cebolinha.
- Olha, esse não é o problema, pois os nutrientes contidos na placenta servem para qualquer mãe.
- Vegano só se fode nessa vida. Nem respeito pela nossa placenta vocês têm.
- Senhora, não se trata disso.
- Não? Meu marido levou nossa própria tupperware porque até isso vocês negligenciam.
- Acreditamos que a confusão se deu por causa dos recipientes iguais.
- E eu com isso? Vou denunciar no Reclame Aqui.
- Nesse caso, a única que pode solicitar indenização é a gestante que teve a placenta ingerida, pois a da senhora continua aqui disponível.
- Como você se chama?
- Clarice.
- Clarice, eu tô tentando manter a calma, mas vamo lá…
- Pois não.
- Energia é algo muito importante pra alguém no meu estado. Eu não conheço a dona da placenta que eu comi. Não sei qual a origem, posição política e nem se houve amor envolvido na concepção. Você entende o risco?
- Desculpa, mas não tenho essas informações.
- É claro que você não tem.
- A senhora está no seu direito de reclamar, mas precisamos saber se vai retirar a placenta.
- Tenho escolha?
- Podemos marcar pra quinta? A outra mãe topou conhecê-la. Queríamos filmar o encontro e divulgar em nossas redes sociais com um pedido de desculpas.
- Oi? Eu entendi mal ou vocês querem se promover em cima do engano que VOCÊS cometeram?
- A causa é nobre. Vamos mostrar que qualquer um pode ingerir a placenta.
- Pra quê?
- Pra estimular a doção da placenta, um alimento nutritivo que, em geral, é descartado.
- Que porra de iniciativa é essa?
- É uma campanha da clínica em parceria com o novo governo.
- Vocês vão faturar com isso? Que horror!
- É para os pobres.
- Meu Deus, o Dória agora foi longe demais.
- Contamos com a sua presença?
- Vai tomar no cu, Clarice!