No interior do trem, Luana liga a câmera e aponta para Delfino:
- O que você pretende com essa sua jornada?
- Limpar meu nome.
- E o que significa limpar seu nome?
- Rabiscar ele da parede da estação Perus.
Impaciente, Luana desliga a câmera.
- Del, o documentário é sobre a sua jornada de desconstrução. Dá pra
ser menos literal?
- Desconstruir o quê? Eu não sou esse babaca que você
imagina.
- Então por que te sacanearam assim?
- Sei lá, ainda acho que foi um engano.
- Conta do começo aí, vacilão - liga a câmera - por que tá
despencando lá de Pinheiros até Perus, extremo da ZN?
- Começou quando, do nada, uns caras que eu não conheço começaram a invadir
meu whats.
- O que eles queriam?
- Puxar papo. Ignorei até certo limite. Quando um cara perguntou se eu era "ativo", quis saber onde tinha arrumado meu número.
- E aí?
- Perguntei com jeito pra não afugentar. O cara riu, fez joguinho, falou que tinha pegado o número
onde eu tinha deixado. Aí insisti e ele abriu o jogo.
- O que ele disse?
- Que tinha visto no Trem de Perus. Achei que fosse algum
aplicativo gay.
- Trem de Perus, um aplicativo gay? - desliga a câmera às
gargalhadas - com esse nome, só se for de gays mineiros, né?!
- Sei lá, não conhecia o bairro.
- E o que tá escrito lá na estação? – religa a câmera.
- “Moro perto”.
- O que achou da mensagem?
- Sagaz, porque é discreta. Parece de alguém que quer mesmo
sacanagem. Logo, deve ser de mulher.
- Como um homem escreveria pra sacanear o outro?
- Com grosseria. Colocaria o tamanho pau, essas coisas.
- Resumindo: você acha que alguma mulher quis te foder
colocando seu número lá pra te inundar de mensagens de machos.
- Não é bem isso.
- Sim, porque só macho pra se excitar com anúncio de sexo na
parede de estação.
- Olha, eu acho que alguém errou o número, só isso.
- Como é sua vida sexual?
- Você tá tentando provar que eu mereci, é? Tô percebendo a manipulação.
- Só tô investigando. Pelo que eu conheço de você, não
estranharia se fosse vingança.
- Lu, seu doc tá com um tom passivo agressivo, ou tô
enganado?
- Chegamos, vai lá procurar seu nome enquanto eu te sigo.
20 minutos depois, diante de uma parede coberta de mensagens, anúncios,
desenhos e pixos:
- Achei, Lu. Nossa!
- O quê? Nossa, quantos!
- Eu não vou conseguir apagar tantos números. A pessoa quis me foder de verdade.
- Eu não vou conseguir apagar tantos números. A pessoa quis me foder de verdade.
- Toma o pincel. Vai que eu vou filmar.
- Ei – intervém um funcionário da CPTM – tá desenhando na
parede?
- Não, tô apagando os anúncios que fizeram com meu número.
- Rapaz, pode apagar nada não. Só escrever. Essa parede é nosso
muro vivo. É cultura de periferia em ebulição.
- Amigo, você não entendeu. Me sacanearam, colocaram meu
número aqui.
- Olha quantos profissionais do sexo anunciam aí. Ninguém liga,
porque se tornou arte.
- Porra nenhuma, olha o monte de arrombado que me chamou
pelo whats.
- Calma, Del – contém o amigo - Senhor, podemos rabiscar só um
dos números da sequência? Assim ninguém reconhece o celular dele.
- Lamento. Nesta estação a gente preserva a intervenção
artística. Desenha alguma coisa aí, mas respeita a arte alheia.
- Já sei! Del, faz seu manifesto, diz que você
foi machista e por isso foi sacaneado. Faz sua mea-culpa, aproveita a
oportunidade.
- Mea-culpa de quê? Eu fui chutado pelas minhas quatro últimas ex, sendo
que duas me chifraram.
- É isso ou vamo embora.
Após 15 minutos, sob olhar atento do ferroviário entusiasta das artes, Delfino finaliza seu texto na parede.
- Lê pra gente, Del.
- “Não sou michê. Meu número (987047689) foi escrito
neste mural para me punir por suposta conduta inadequada. Peço
desculpas a quem possa ter se ofendido. Isso não é nada comparado à violência diária
enfrentada pelas mulheres, mas aceito este pequeno castigo e me esforçarei para
ser um homem melhor.” Gravou?
- Gravei, seu feministinho de merda. Quer biscoito?
- Gravei, seu feministinho de merda. Quer biscoito?
- Chega, vou pedir um Uber.
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