quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O aniversário de Talitinha

Logo no primeiro dia de trabalho na produtora, o designer Tulio se espantou com a cor dos olhos de Talitinha. Tom violeta enfumaçado. Realmente um deslumbre. Além de linda, a pequenina era gentil e atenciosa. Todas as manhãs o cumprimentava com um sorriso, chamando-o pelo nome. Isto aquecia as manhãs friorentas do rapaz.

Apesar da Talitinha namorar um japonês viciado em games, Túlio tinha esperança de atrair a afeição da ninfeta. Era comum ela queixar-se, para quem quisesse ouvir, da indiferença do amado. Olhos como aqueles não podiam ser possuídos por um japa infantilóide, pensava. Era hora de vencer a timidez para desbancá-lo. A oportunidade parecia chegar naquela tarde.

De costas em sua mesa na sala de criação, Túlio escutou Talitinha, faceira como ela só, lançar um convite sapeca para Davi e Ricardo, dois simpáticos roteiristas, adeptos do humor pasteurizado. Sujeitos que falam bastante, mesmo sem ter qualquer assunto em mente, e riem das próprias piadas. Enfim, caras de prestígio.

- Meninos, vou comemorar meu aniversário hoje na Augusta, nove e meia. Quero ver vocês lá. – Os olhinhos faiscavam como nunca.
- Na Augusta?! Tá mal intencionada né!? Onde vai ser?
- Então... Queria uma balada diferente, sabe!? Nada dessas festinhas com DJ, patricinha, caretice... Ai to cansada de tudo sempre igual - Talitinha choramingava graciosamente - Marquei com uns amigos no Coco Bongo. É um daqueles puteirinhos de lá. Vai ser doido! Uma amiga minha comemorou aniversário num lugar assim e disse que a galera rachou o bico à noite inteira.
Túlio ficou paralisado, enquanto Ricardo e Davi pareciam desconcertados, mas só por alguns instantes.
- Hahahaha... Que isso, Ta? Zuada essa sua idéia! Minha religião não permite, ok? – Fez cu doce Davi.
Ricardo foi direto ao ponto. Como faria Túlio, se estivesse participando da conversa:
- Que seu namorado acha dessa ideia?
- Ai, seus caretões! Ele nem vai. O Ken detesta meus amigos. Vou jantar com ele e com a minha família antes. Gente, não é para espalhar, ok? Tô chamando só aqueles que eu sei que vão meeeesmo.
- E você acha que a gente tem cara de putanheiro né? – Davi insistia no cu doce.
Cheio de ansiedade, Túlio ouviu mais algumas gracinhas dos amigos, respostas com falso encabulamento de Talitinha e por fim a menina despediu-se sem convidá-lo para a farra. O rapaz encarou os amigos sem disfarçar a decepção. Nele, este desalento adquiria certa comicidade, logo percebida por Ricardo.

- Que cara é essa? Tá com fome? Vamos lá na padaria.
Conversa vem, conversa vai, Túlio enfim pôde exprimir seu lamento. Mastigando amargamente um ovo cozido empanado, afirmou que não iria comparecer à festa.
- Vocês viram que eu nem fui convidado. Passou por mim como se eu fosse um fantasma. O que eu vou fazer lá!? – argumentou com os olhos cheios de lágrimas.
- Larga de ser bundão, Túlio. Ela pediu pra falar com os mais chegados. Você também pode ir. A não ser que seja crente. Aí é outra história.

Túlio resignou-se. Não teve o prazer de ser convidado por Talitinha, mas não podia deixar de vê-la radiante naquele dia especial. Pensou nos olhinhos violetas faiscantes. Recuperado da esnobada, Túlio agora buscava nos amigos um pouco mais de estímulo.
- Que horas vocês vão pra lá?
- Não sei. Vou sair daqui, passar em casa, tomar um banho e vou. – garantiu Davi.
- Também vou fazer isso. – completou Ricardo, aparentando desinteresse.
- Bom, eu tenho que terminar umas coisas. Se ficar tarde eu vou direto. Vocês vão com certeza, né?
A insegurança de Túlio era minimizada por Davi e Ricardo, que admiravam nele o lado profissional, mas socialmente consideravam-no inferior. Como uma criança medrosa. De fato, o rapaz não fazia questão de dissimular a própria insegurança. Era constrangedora sua transparência.

Nove e quinze da noite. Túlio conformou-se em ir direto, sem banho e sem a carona dos amigos. Não queria perder mais tempo. No caminho, pensava num gracejo ou frase de impacto para dizer a Talitinha quando a visse. Um presente? Não. Seria demais para quem sequer fora convidado formalmente.
O pacato rapaz não estava habituado a programas mais sórdidos. No máximo, um dos insossos barzinhos próximos à produtora. A sujeira da Rua Augusta, assim como os tipos extravagantes que a habitam, impressionaram Túlio. Já não sentia confiança para gracejar.

Túlio mirava os letreiros em neón buscando o local indicado por Talitinha. Enquanto isso, plantados nas portas dos puteiros, nordestinos de rostos encovados, metidos em ternos baratos, lhe faziam propostas indecorosas: “E aí meu, tá a fim de enfornar o robalo?” “Dez reais, duas brejas e um bando de safadas doidas para dar o chibiu! Topa não, excelência?” Por fim, Túlio achou o pardieiro indicado. Tão banal como os outros. Pior, na placa onde deveria se ler Coco Bongo, só se lia Coco go, pois algumas luzes do letreiro estavam queimadas. Talitinha perdeu mesmo o juízo, pensava. A recepção foi semelhante às anteriores: “Bucetada na cara, campeão?”. A proposta afugentou o rapaz, que seguiu em frente, sem coragem de entrar no pardieiro. Surpreso com a própria atitude, desconfiou ser ele tão careta e patético como o namorado japa, que Talitinha dispensou para celebrar em meio a cafetões, traficantes, putas e “bucetadas na cara”.

Cruzou mais duas vezes com o porteiro do Coco Bongo até finalmente resolver entrar.
- Ô meu amigo, entra logo. Tenha medo não. Parece até que é tu quem vai dar o rabo. Assina a comanda com a tia ali e é só correr para o abraço.
Ainda pouco convencido, Túlio foi lançado para dentro. Desnorteado com a penumbra e o som altíssimo, o rapaz descobriu que ao deixar quinze reais na porta, tinha direito a duas Bavarias chocas, servidas de trás do balcão por um digno senhor de bigodes brancos.

Encostado no balcão, Túlio tentou avistar alguém do trabalho. Nada. Apenas gatos pingados desconhecidos. Uma música cafona berrava no alto falante. Passou pela sua cabeça a possibilidade de tudo aquilo ser um trote. Ninguém chegaria ali e ele voltaria para casa com cara de idiota. Decidiu bebericar sua Bavaria e aguardar um pouco. Não deu trela para o assédio das putas flácidas que cruzavam o ambiente. Em seu campo de visão, só o velho de bigodes, encarando-o tristemente. Cada minuto era um tormento.
Dois caras sentaram-se ao lado de Túlio. Eram até simpáticos. Queriam fazê-lo participar da conversa. Túlio sorriu amarelo e continuou a assistir o velho enxugar taças. Mesmo assim eles se apresentaram. Um deles chamava-se Robson e o outro era seu primo Claudemir. A simpatia da dupla acabou vencendo a resistência do rapaz. Após cinco cervejas, os três conversavam animadamente sobre sacanagem e futebol. Túlio falava pouco, mas conseguia se distrair.

Entretidos pela conversa, eles não notaram a entrada de um pequeno e animado grupo. Quando Túlio olhou para o fundo do bar, Talitinha estava se sentando em uma mesa, acompanhada por três caras de trejeitos homossexuais, e uma menina de cabelos preto e roxo. Nenhum rosto conhecido. Nem sinal de Davi e Ricardo. O rapaz pretendia juntar-se a eles, porém sentiu uma súbita covardia. O grupo estava plenamente integrado. A chegada de um novo elemento, pacato e certinho como ele, traria desconforto geral, presumiu. A paranóia o conteve. Ao virar-se novamente para o balcão, tentando não ser notado por Talitinha, deparou-se com três copos de cachaça à sua frente.

- Vira aí, mano. Cortesia nossa! – Oferecia o sorridente Robson.
- Ih, vocês viram lá no fundo a dondoquinha toda se achando? Novinha assim e já colando o velcro. Mas eu passo a vara mesmo assim, mano!

Túlio incomodava-se com os comentários sobre seu xodó, mas a preocupação maior era não ser visto. A pinga começou a subir a cabeça. Foi então que Robson introduziu uma nova participante na conversa.

- Aí, chegado, essa aqui é a Glorinha. Hehehe! Ela tem nome de professorinha de quarta série, tá ligado? Esse é o meu amigo... Como cê chama mesmo, mano?
- Túlio.
- Oi, Túlio. Primeira vez aqui? – perguntou Glorinha, toda dengosa.
Túlio não entendeu bem a pergunta. Um pouco pelo barulho e um pouco em função de seu estado alcoólico.
- Não, não. Eu já transei antes.

Os dois amigos começaram a gargalhar. Glorinha, timidamente, mostrou um dentinho podre. Túlio, com medo de chamar a atenção de Talitinha, afundou-se dentro do casaco. Mas nem era preciso, pois a aniversariante e sua turma extravagante gritavam e gargalhavam sem notar o universo ao redor. O velho do balcão resmungava solitariamente contra a presença de “viados” em um ambiente “sadio”.

- Deixa de ser trouxa, Túlio. Ninguém aqui quer saber das tuas trepadas. O assunto é a Glorinha! – Robson envolveu a puta com os braços - Não é meu biju?! To precisando de umas lições! Quer ser minha professorinha?
- Diz aí quanto é o showzinho? – perguntou Claudemir, o mais objetivo dos três.
- Não faço show. Se quiser vamos lá pro quarto. Oitenta reais a hora, gato.
- Ahh... Mas eu preciso ver o material primeiro.
Glorinha hesitou um pouco. Porém o movimento estava fraquíssimo e ela acabou topando.
- Ok meninos, mas depois quero fazer o serviço completo. Eu danço pra vocês por trinta. Sentem nas cadeiras ali atrás que eu já volto – Retirou-se apressada.
- Opa! Vamos lá!
Robson e Claudemir entraram por uma porta lateral, logo na entrada do bar. Era um ambiente privativo. Túlio, indiferente às negociações, foi puxado pelos dois. No trajeto, pode olhar novamente para a mesa de Talitinha e gelou ao vê-la encarando-o. Mas daquela distância, e em meio à penumbra, era pouco provável que fosse reconhecido, tranqulizou-se.

Já sentado entre Robson e Claudemir, Túlio demorou a entender que Glorinha dançaria sem roupa para eles.
- Entendi. E eu posso encostar a mão?
- Claro, porra! Isso aqui não é o balé do Municipal! Você vai ver logo.

Glorinha entrou trajando calcinha e sutiã pretos. O corpo inteiro lambuzado de um óleo com fragrância de uva. A morena tinha pernas longas e finas, mas era bem fornida onde interessava: na bunda. A luz fraca ajudava a delinear as reluzentes curvas de Glorinha.

- Aí, meu velho! É disso que eu to falando. Isso é que é show de verdade.
Começou a tocar uma balada do Red Hot Chili Peppers. Devia ser a música de trabalho de Glorinha. Túlio sentia-se entusiasmado com a possibilidade de acariciar o corpo da morena. Ela iniciou a dança roçando a bunda nos joelhos de Claudemir, que envolveu os dois peitos da puta com as mãos. Ela desvencilhou-se para tirar o sutiã e a calcinha. Túlio ouvia Robson e seu primo rirem e gritarem asneiras, mas não conseguia distinguir o que diziam. Estava com os olhos vidrados no corpo à sua frente. Após se esfregar em Robson, Glorinha voltou a insinuar-se para Claudemir. Túlio sentiu-se ignorado pela puta, que não lhe dava chance de tirar uma lasca sequer. Quando ela voltou ao centro para, de costas, abaixar o tórax até tocar os joelhos com as mãos, Túlio perdeu as estribeiras. Avançou como um cão faminto em direção à suculenta bunda. Mas aconteceu uma cena grotesca. Ao tentar puxá-la pela cintura, a mão do rapaz escorregou para entre as oleosas nádegas. Glorinha no susto virou-se, e a unha do dedo médio do rapaz cravou em uma área bastante sensível da puta. O grito emitido foi de dor e revolta.

- Aiii! Enfiou o dedo no meu cu!? Faz isso na sua mãe, filho da puta! – Enquanto xingava, Glorinha dava safanões sobre a cabeça de Túlio, que defendia-se como podia. Não eram estas as carícias que ele esperava obter da moça.
- Calma, calma, foi sem querer, minha flor! – De nada adiantaram os panos quentes de Robson.
Glorinha estava muito irritada e ficou ainda mais quando Túlio tentou se explicar:
- Esta minha unha aqui tá um pouco grande, eu uso pra tocar violão e... – O rapaz nem conseguiu completar.
O segurança já pegou-o pelos ombros para expulsá-lo. Túlio ainda ouviu uma última ofensa de Glorinha:
- Esse aí não gosta de mulher! Nem sei o que veio fazer aqui.

Os três rapazes foram levados ao caixa para quitarem as contas e saírem ilesos de uma confusão maior. Robson e Claudemir não pareciam contrariados. Pelo contrário, riam da situação, enquanto Túlio notava, aliviado, que Talitinha havia ido embora.

- Nossa, meu! Corta essa unha antes de enfiar o dedo em alguém, ok? Senão você vai acabar pagando só pra levar porrada. Hahahahaha! – caçoava Robson.
- Será que o Zé do Caixão já fez fio terra em alguém? - Indagou Claudemir.

Expulsos do Coco Bongo, Robson e Claudemir viraram as costas para Túlio e se enfurnaram no puteiro vizinho. Sem vontade de prolongar aquela jornada deprimente, o infeliz designer manteve-se pensativo por uns instantes. Parado na calçada, ouviu chamarem seu nome.

- Túlio!?
- Ta? Oi... Tudo bem?
- O que você ta fazendo aqui? Vi você sair daí de dentro.
Túlio atrapalhou-se com a resposta:
- Eu... Eu... Eu costumo vir aqui... à noite. E você?
- Vocêêê?? Nossa, nem parece... – Passou pelo rosto de Talitinha uma sombra de decepção, que Túlio notou – Menino, eu tava aí dentro com uns amigos. Mas achei muito chato. Pensei que fosse mais animado. Aliás, tenho que ir, o povo tá me esperando. Juízo, hein!?
- Eu... Eu...
- Ih, fica tranqüilo! Não vou espalhar que você freqüenta esse lugar. Se encontrar o Davi e o Ricardo, diz que eles são uns furões. Beijinho, tchau! – A garota atravessou a rua correndo.

Bêbado, envergonhado, e com o estômago ardendo, Túlio procurou por algum dinheiro no bolso. Percebeu que as ofensas de Glorinha custaram-lhe o montante reservado para o ônibus da volta. Juntando moedas deu para comprar um croquete no boteco. Constatou que o quitude estava azedo. Não esperava outra coisa mesmo.

2 comentários:

Rita disse...

tadinho do Túlio, Léo!
croquete azedo não, it kills people, Carl!

mauro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.