sexta-feira, 3 de julho de 2009

Honra

Na placa lia-se: Pastel de Feira da Elvira, delícia da zona leste! Ficava no alto de um trailer triste, estacionado em uma praça coberta de lixo.
Três amigos, de uns vinte e poucos de idade, chegavam famintos à frente do balcão. Os dois mais novos estavam bastante excitados, enquanto o maior e mais velho olhava ao redor preocupado. Dona Elvira atendeu com doçura.
- Oi, meninos! Pastel e caldo de cana?
- Vê um de pizza, tia – pediu Gilvan, o grandão desconfiado.
- Pra mim um de carne – escolheu Paulo César, que ostentava
um topete salpicado de dourado.
- Eu quero de palmito – engrossou a voz James, o menor,
mais inquieto, e portador de um pequeno pacote embrulhado com jornal.
Gilvan e Paulo esqueceram a tensão por alguns instantes e se
entreolharam divertidos.
- Meu, olha que bichona... vê se homem de verdade pede pastel de palmito – provocou Paulo.
James, suscetível como era, não deixou barato.
- Então tá, PC!? Quem era a bichona que tava se borrando agora
há pouco? Pensa que eu não percebi? Tô mentindo, Gilvan?
Gilvan não dava bola para as provocações dos garotos. Preferia observar apreensivo a aproximação de dois PMs. Um deles tinha aparência estúpida, compensada por músculos intimidantes. Já o outro, calvo e de semblante enérgico, suscitava recordações desagradáveis no rapaz. O trauma de dormir na prisão ainda estava vivo.
O PM calvo, morador do bairro, tipo correto e metido a guardião de sua comunidade, retribuiu o olhar desconfiado de Gilvan. Quis deixar claro que o reconhecia. Discretamente, ele alertou o colega de farda.
- Aquele é ex-detento. Tem que ficar sempre de olho
O PM forte não deu bola. Preferiu estudar o comportamento de James e PC, que comiam pastel e papeavam desembaraçadamente.
Gilvan voltou-se para os companheiros. A tensão o fazia suar na testa. O comportamento espalhafatoso dos colegas só piorava as coisas.
- Se não fosse eu, não passávamos o cara, mano. Sabe por
quê? Porque eu sou novo, mas tenho sangue nos olhos! – Gabava-se James, para terror dos dois amigos.
- Cala a boca, moleque! – Sussurrou Paulo, já ciente dos olhares
incômodos.
Os policiais fitavam Gilvan e seus amigos ostensivamente. James enfim percebeu. Então cortou o discurso abruptamente, levou o copo de garapa à boca e o virou de uma só vez. A perturbação dos três ficou evidente.
- Estes caras aprontaram. – comentou consigo mesmo o PM calvo, enquanto mastigava calmamente um pastel de calabreza.
Gilvan se atrapalhou um pouco e deixou cair metade de seu pastel no chão. Na mesma hora tratou de apressar os outros.
- Acabaram aí, né? Vambora.
PC e James assentiram e pagaram Dona Elvira. Ao notar, estarrecido, que James deixara o pequeno pacote repousando sobre o balcão, Gilvan dirigiu-lhe um olhar furioso. Prontamente, o caçula do trio pegou o pacote e saiu andando rápido, acompanhado pelos amigos.
O policial calvo cutucou o colega, que permanecia indiferente à partida dos três.
- Vamos seguir os moleques, Tavares.
- Esquenta não, tenente. Deixa ir... vamos comer mais um.
- Vem comendo.
O subordinado, não vendo alternativa, deixou o dinheiro no balcão, sorriu para Dona Elvira e apressou-se.
Os rapazes discutiam. Gilvan era o mais nervoso. Queria encher James de pancada, mas no íntimo, considerava-o isento de culpa. Aquela situação poderia ter sido evitada, pensava. Pois não precisava de dois cúmplices. A covardia o levou a cooptar os amigos para a missão. Achou que a ajuda deles agilizaria o processo. Serviço de equipe: limpo e rápido. Agora, Gilvan olhava para trás e não via ninguém. Ia recuperando a calma. Porém, o alívio durou pouco, pois sentiu o sangue gelar quando os policiais apontaram na esquina.
- Podem andar sem medo. Não tem treta, galera. É só intimidação. – Instruiu o pouco convicto líder do grupo.
- Não tem treta é o caralho, mano! O pacote tá comigo! O que eu
faço com isto? Engulo? – Vociferou James.
- Vamos ter que correr, Gilvan!
- Espera!
Gilvan perdeu o comando. No fim da rua, PC correu para um lado e James atirou o pacote no lixo antes de zarpar pela direção contrária.
- No lixo não, animal! – Suplicou o desesperado líder.
Os policiais aceleraram o passo. Gilvan hesitou em pegar o pacote na lixeira, aturdido pela possibilidade de chamar a atenção dos perseguidores. Optou por correr sem olhar para trás, ciente da roubada em que se metera. Ao cruzar a avenida, duas quadras à frente, sentia-se angustiado pelo arrependimento. Inconformado com a burrice feita. Os policiais abandonaram a perseguição, mas fatalmente vasculhariam o lixo. Entregar de bandeja uma prova como aquela selaria a tragédia dos três, previa.
- Abre logo, Tavares! Não é para ficar cheirando!
- Calma, tenente, pode não ser este o pacote...
- Claro que é, porra! Pensa que eu não reparei lá na pastelaria?
- Tá cheio de durex colado no papel. Peraí.... Pronto! Olha aí, os caras se complicam por causa de uma mixaria de bagu... Epa!
- Que isso?
- Sei lá... não é bagulho. Parece osso para cachorro ou...
- Dois dedos!
- Hã?
- É sim, meu! Olha a unha preta! Tem até um anelzinho num deles. Não falei que eles tinham feito merda? Vamos cercar o bairro, senão eles desaparecem.
- Vou acionar as viaturas. Será que tem defunto?
- Porra, Tavares! Eles acharam isto na rua, por acaso? Chama logo aí!
PC e James estavam em casa, preparando a fuga. Enchiam as respectivas mochilas com pertences quando a polícia chegou e os levou à delegacia do bairro. Gilvan não fora encontrado. O tenente previa dificuldades para capturá-lo.
- Estes aí são peixes miúdos. Sem malandragem. O grandão é fichado. Liderou a gangue com certeza. Vai resistir, podem escrever.
Para surpresa do tenente, dos policiais e dos companheiros de fiasco, Gilvan se apresentou espontaneamente à delegacia pouco tempo depois. Nada disse ao entrar na sala do delegado. Simplesmente abaixou a cabeça como um condenado que aguarda a sentença. Era a expressão absoluta da derrota. Tal postura indignou os amigos, até então apegados à experiência e maturidade do líder como pontos à favor. Os dois mais jovens estavam firmes no intuito de negar qualquer evidência sobre o delito. Foram separados em três salas. O tenente calvo ficou por conta de Gilvan.
PC e James sofreram com a truculência dos inquisidores. Apanharam , tiveram as famílias ameaçadas e acabaram contanto o que sabiam. Mas o detalhe fundamental, só Gilvan poderia revelar.
O tenente calvo empreendeu um método menos agressivo. Sabia do trauma de Gilvan. Buscou ganhar-lhe a confiança. Descobriu o nome da vítima: Tadeu Gonçalves Pereira, assassinado a socos, chutes e pauladas.
- Esse cara só arrumava confusão. Devia saber que pra poder mexer com o que é dos outros, e ainda tirar onda, tinha que se garantir. Ele vivia dando mole por aí bêbado, doidão, desarmado... tretou com quem não devia, desrespeitou a mina de um cara que não deixa passar.
- E aí vocês carimbaram ele. Mas e os dedos?
- Ah, isso aí é coisa de honra. Aquele dedinho com o anel vai virar
troféu. Pra impor respeito, tenente.
- Mas e o outro dedo, caralho?
- Primeiro arrancamos o errado, quando vimos, tivemos que cerrar o certo para levar junto.
- Entendi, Gilvan. Fez bem em contar. Fica tranqüilo. Você tá
seguro aqui. Só me fala o nome do cara.
- Tenente. Eu me fudi uma vez, fui preso, minha mãe adoeceu por
causa disso. Sei que ela não vai me receber de volta se eu sair daqui de novo. Coloquei o PC e o James na canoa furada... Depois de tudo, o que eu posso dizer? Da minha boca não sai mais nenhum nome. Também tenho minha honra.
- Há! Vai tomar no cu, seu bosta! Os quatro tão nessa. E o figurão é o que tá mais fudido. – o tenente esforçou-se para manter a calma - Vamos fazer o seguinte, me leva até o terreno onde vocês desovaram o cara, depois conversamos melhor.
A noite daquele 25 de maio era hostil. Ventos gelados e baixa umidade castigavam o trio que invadia um terreno baldio por um buraco aberto no muro.
O PM Jucilei, encarregado de cavar, cravou a pá no local indicado por Gilvan. Nem foi preciso ir muito fundo para achar o corpo. O homem da pá deteve-se por um instante, deixando o defunto parcialmente enterrado. Inconformado com o silêncio do jovem homicida, o tenente apelava para ameaças.
- Você escolhe: Fala o nome do cara ou vai dormir junto com esse infeliz aí.
Diante de outra negativa de Gilvan, o tenente socou-lhe as costas com brutalidade. O rapaz foi parar sobre o cadáver semi enterrado. Tentou levantar-se e levou mais um pisão. Não levantou novamente. Ficou deitado sobre o corpo da vítima. O PM Jucilei, habituado aos métodos mais sutis do tenente, encarou a cena surpreendido. O nojo que sentia do odor exalado pelo morto chamava-lhe menos a atenção que a postura truculenta do sempre exemplar companheiro de farda.
- Estava tentando te dar uma chance. Sei que você só entra nessas porque é burro. Aprende uma coisa: miserável não precisa de honra! Sobreviver já é lucro.
O tenente não abriu a boca no retorno à delegacia. O cheiro de gás metano, entranhado nas roupas de Gilvan, empesteava o interior da viatura. Jucilei dirigia sem disfarçar a careta repulsiva. Próximo à delegacia, não agüentou e vomitou pela janela, com o carro ainda andando.
Gilvan foi jogado em uma cela. Os colegas de infortúnio tiveram destino semelhante, porém estariam de volta às suas casas em período mais breve que o líder do bando.
O fedor de morte tomou conta da prisão e martirizou ainda mais os detentos. Isso, pelo menos, garantiu o isolamento desejado por Gilvan. Algo cristalino tomava forma na consciência do rapaz. Sentia-se serenamente digno por ter confessado. Esta resolução purificava-lhe, ao menos por uma noite. Difícil seria buscar motivação para sobreviver às próximas.