quarta-feira, 6 de maio de 2009

Alvorada dos Lordes

A confusão teve início quando a Fonseca Empreedimentos Imobiliários ergueu o luxuoso condomínio Alvorada dos Lordes. Era o pulo do gato da emergente empresa. Os ricaços interessados em conforto, lazer, segurança, e outros clichês habitacionais, ficaram logo entusiasmados. Várias famílias arremataram seus imóveis dos sonhos ainda na planta. Entre os compradores estavam muitos freqüentadores de um mesmo círculo social; portanto, tinham relações amistosas, de admiração mútua, ou inveja mútua, a familiarizá-los.

Uma das felizes compradoras, a solitária socialite Geórgia Maldonado, estava exultante com a nova morada. Geórgia não precisava, e não queria, trabalhar. Tinha alma de artista, diziam seus bajuladores. O marido, executivo de multinacional, lobista, entre outras atividades nebulosas, vivia a viajar. Foi no Alvorada que a dócil madame reaqueceu suas amizades. Gostava de receber para o chá ou visitar outras influentes matriarcas. Comentavam sobre cultura, casamentos malfadados, fortunas dilapidadas, violência urbana. Apenas um boletim geral sem profundidade alguma. Afinal, não desejavam se exaltar, apenas ouvir o som das próprias vozes.

Passados alguns meses, Geórgia, auto proclamada "artesã do lar", decidiu empreender a primeira reforma. Ou "intervenção artística", como ela mesma definia. Na verdade, não considerava sua sala ampla o bastante. Sentia-se um pouco “emparedada”. Queria derrubar a parede do escritório, jamais usado pelo marido, para aumentar o espaço da sala. A missão foi confiada ao pedreiro Lindomar, "um verdadeiro Midas", conhecido entre as famílias do pedaço. Após um rápido estudo do local, o pedreiro tratou de voltar na manhã seguinte, com as ferramentas em mãos, pronto para um dinheirinho fácil.

Uma marretada, duas, três... e foi ruindo a grossa parede. Mas tinha um negócio estranho ali no meio. O pedreiro ficou lívido, desnorteou-se, não podia continuar o serviço, foi chamar a madame. Para assustar Lindomar daquele jeito, boa coisa não podia ser. Antes de mostrar o achado, gastou algum tempo prevenindo Geórgia sobre a visão que teria. Impossível não se chocar com o pequenino corpo, quase intacto, mumificado por uma camada de reboco. A pele adquiriu o tom cinzento de uma estátua. Ali estava uma menina de no máximo nove anos. Lindomar se benzeu, tirou o boné em respeito, enquanto a madame apenas arqueou uma das sobrancelhas, aparentando mais descontentamento do que susto. Nesse dia começaram os transtornos de Geórgia. Ela até tentou ser prática ao chamar os bombeiros de imediato. Naturalmente, a situação foi além.

Percebendo o tamanho da merda, os bombeiros acionaram a polícia. Após averiguação, dois policiais interditaram a obra e chamaram a perícia. Bastou isto para indispor a proprietária com as autoridades. Desejava apenas que levassem dali a “coisa” para Lindomar continuar a derrubar a parede. Depois de resistir, a madame acabou colaborando. Coitada, ao tentar evitar um escândalo, acabou fazendo exatamente o inverso com sua falta de calma. O entra e sai no apartamento já gerava reações calorosas dos outros condôminos.

Após dormir em um hotel, lá estava ela, na delegacia, prestando esclarecimentos. Irritadíssima, ignorava as perguntas e afirmava não ter a mínima idéia de como a menina entrara ali. O delegado, muito respeitoso, a tranqüilizou. Não desconfiava dela, afinal, presumia que o crime fora praticado por um ou mais operários envolvidos na construção do prédio. O encarregado saboreava cada detalhe do caso, antevendo a fama que a sinistra ocorrência poderia lhe render.

De volta ao Alvorada, a madame se deparou com alguns moradores reunidos no saguão. Logo a cercaram. Uns se sentiam no direito de fazer qualquer pergunta, outros se solidarizavam de forma pouco convincente, enquanto algumas amigas tentavam, inutilmente, protegê-la do assédio. O rebuliço chamou a atenção dos repórteres de plantão à frente do prédio. Eles também a cercaram.

- A senhora tem idéia de como aquela criança foi parar lá?
- A senhora pretende mudar-se para facilitar as investigações?
Provocada, a madame se enfureceu:
- Esta é a minha casa! Não me importunem! Os intrusos aqui são
vocês!

Os flashes foram disparados no momento de descontrole da madame. Dizem que a socialite é um doce de pessoa, mas a tensão a deixa fora de si. Aos pontapés, furou o bloqueio e entrou no elevador. Na porta de seu apartamento, um novo ataque de fúria. Uma fita isolava a área, não permitindo a aproximação. Geórgia arrancou a fita, enquanto dirigia impropérios aos quatro cantos, e foi entrando. O policial em guarda ameaçou detê-la, mas conteve-se ao perceber de quem se tratava. Rapidamente, dois peritos a abordaram com toda a delicadeza possível. Disseram que o trabalho deles se encerrara. O corpo fora removido para um laboratório. Naquele momento, segundo eles, a identidade da criança já era conhecida. A madame não se acalmou com as explicações. Só pensava em retomar sua calma rotina.

- Não quero saber quem é ou quem foi, só peço que desocupem minha
casa imediatamente! Onde estão meus ajudantes? Judite! Alencar!
- Eles foram dispensados, senhora... não podiam ficar aqui
enquanto...
- Mas o que é isto?! Eu já dei folga para eles na semana passada. Quem vocês pensam que são para determinar as regras de funcionamento de minha casa?

Os agentes da polícia se entreolharam desanimados. Naquela altura a mídia já ligara os pontos, então decidiram abrir o jogo. A suspeita deles racaía sobre uma série de desaparecimentos ocorridos alguns meses antes. Onze crianças de uma comunidade pobre vizinha sumiram sem deixar vestígios. A polícia acreditava que o corpo achado pertencia a uma delas. Geórgia continuava indiferente. Aí veio a parte difícil para ela:

-Veja bem, senhora, trabalhamos com a possibilidade de outros corpos estarem emparedados neste imóvel. Isso significa interdição total. Lamento.

Os jornais do dia seguinte destacavam o caso. A menina encontrada, Marcilene dos Santos, de nove anos, era mesmo uma das crianças procuradas. O laudo indicou que a pequena sofrera estupro antes de ser asfixiada. A indignação de Geórgia também mereceu destaque. Foi noticiada a recusa dela em deixar o apartamento após a interdição do local. para constrangimento geral, a polícia precisou removê-la à força, acrescentavam alguns veículos. De saída do imóvel, a madame revelou a alguns repórteres que procuraria um advogado para ajudá-la a combater o “abuso policial”. A intensão de dificultar as investigações arrasou com a reputação de Geórgia junto à opinião pública, principalmente entre a população de baixa renda.

Alguns jornais popularescos estamparam insinuações grosseiras sobre a socialite. Um deles continha a manchete apelativa: O POVO versus GEÓRGIA MALDONADO, ao lado da foto da mãe de Marcilene, bastante abatida. Na matéria, a triste senhora convocava outras mães como ela, saudosas de seus filhos desaparecidos, a lutar, apesar de "gente poderosa" tentar abafar o caso. Dali em diante, Geórgia passou a ser evitada por todas as famílias do Alvorada. No mesmo dia, outro tablóide foi além. Publicou uma montagem grotesca da madame, sentada em um trono de ossos, sob a alcunha de “Madame Morte do Alvorada”. Apesar de nenhum deles acusá-la, ou sequer suspeitar do envolvimento dela, a tratavam como cúmplice do crime.

No começo, Geórgia pouco se intimidou com os comentários. Todos os dias tentava invadir seu próprio apartamento a fim de expulsar policiais e impedir na marra qualquer dano. Esforço em vão. Uma semana depois, Geórgia sequer conseguia entrar com seu carro na rua. Mães, parentes e amigos dos desaparecidos, além de repórteres, curiosos, vendedores ambulantes e populares de toda espécie faziam vigília diante do Alvorada. A madame era obstinada, mas preservava algum juízo. Não pisou mais lá.

Este período foi difícil também para os outros moradores do condomínio. As famílias, que se mudaram para lá motivadas pela tranqüilidade e o conforto, agora só pensavam em procurar um novo lar. Aos investidores, que compraram imóveis a fim de capitalizações futuras, restou assistir atônitos à enorme desvalorização de seus apartamentos. Ninguém mais se convidava para o chá. As janelas viviam fechadas.

A Construtora Fonseca Empreendimentos Imobiliários passou a sofrer com todo tipo de suspeita. A princípio, a empresa foi acusada pela população, arbitrariamente é claro, de ter contratado assassinos para realizar a obra. Isso não chegava a ser uma acusação séria. Mais tarde, porém, brotaram denúncias concretas contra os sócios da Fonseca. Todos estavam envolvidos em licitações fraudulentas, superfaturamento, entre outras atividades corruptas. Foi o fim.

Quem experimentava um sabor doce nessa história eram os policiais. Da noite para o dia, a comunidade carente que sempre os confrontou passou a aplaudir a iniciativa de investigar os envolvidos na obra, e de buscar dentro do Alvorada os corpos das crianças. Aliás, como esperado, só no apartamento de Geórgia foram achados mais três cadáveres emparedados: Um menino e duas meninas, também estuprados antes de morrerem. A notícia trouxe pânico para os condôminos, temerosos pela integridade de seus lares. O povão ficou inflamado. Queriam justiça, suas crianças de volta. A polícia, farejando violência, formou um cordão para proteger os moradores do edifício. Contudo, os demais apartamentos não escaparam da interdição.

Foi nessa época que o marido de Geórgia chegou da Europa. Discreto, tratou de providenciar um refúgio para ele e a mulher. Alugou um apartamento, bem menor e mais modesto. A grana pesada gasta com a compra do antigo imóvel dos sonhos, aliada ao efeito demolidor da crise financeira do momento, não deixou outra opção. A esposa resistiu, entrou em depressão, e acabou vendo seu oásis de tranquilidade se desmanchar feito miragem.

O Alvorada tinha se transformado em um grande e escandaloso mausoléu.

Um comentário:

ricardo coimbra disse...

Muito bom, seu velho demente. e ainda tem a melhor última frase de conto que você já escreveu.