quarta-feira, 24 de julho de 2013

Emotivo


Após agradável almoço aos pés da Serra da Cantareira, Palhoça circula pela zona norte de carro, desfrutando das companhias da esposa Eunice e de Babi, a filha adolescente.

- Palhoça, que caminho é esse?
- Vou passar pelo Mandaqui.
- Ai, pra quê Palhoça...?! – reclama a esposa, com o mau humor de quem suplica por uma cesta.
- Pra Babi conhecer o bairro onde eu nasci.
- Sua casa era por aqui, pai? – interessa-se a filha.
- Sim. Um casarão ali em cima, onde hoje funciona um asilo.
- É lá que vou te colocar em breve, Palhoça.
- Ai que maldade, mãe.
- Olha lá, Babi! – aponta para a última casa de uma rua sem saída - Minha janela era aquela da direita.
- Nossa, que enorme!
- Era ainda maior. Parece que reduziram o quintal da frente.

Palhoça escancara o saudosismo no olhar, mas Eunice corta a onda, sem cerimônia.

- Pronto, já viram. Podemos voltar agora?

O pai manobra o carro sem pressa, desce até a rotatória e, ao invés de seguir pela avenida, entra por uma rua estreita.

- Palhoça, por aí não... ai, desisto.
- O que houve mãe?

Eunice apenas bufa. Do banco de trás, a filha tenta entender o estado zumbificado de Palhoça.

- Pai?
- Agora explica pra ela, Palhoça. Por que você quis passar por aqui? – desafia Eunice, magoada.
- Pai, você tá chorando. Mãe o que aconteceu?
- É sempre a mesma coisa quando ele passa nesta rua. E eu tenho que aguentar isso engasgada.

Palhoça enxuga as lágrimas, que descem em cascata até o pescoço.

- Não é nada, minha filha. Só lembranças.
- Lembrança de uma suburbana que te chutou há mais de 30 anos. Esclarece pra sua filha!
- Me deixa, Eunice.
- Para, mãe. Papai é emotivo, você sabe.
- Emotivo nada! Ele ainda gosta dessa mulher.

Palhoça chora sem aparentar dor aguda. Digno e sereno como uma Pietá.

- Filha... papai tem recordações de uma moça, que foi importante pra ele.
- Quem era?
- Cidinha é o nome da bisca – intromete-se Eunice - Aposto que ele já a procurou.
- Mãe, o papai não faria isso. Todo mundo tem um amor mal resolvido na vida.
- Olha aí, falou a voz da experiência – ironiza a mãe.

O carro para no farol. O pranto de Palhoça mantém-se imune ao clima belicoso instaurado pela esposa. Por motivos distintos, torna-se um martírio para toda a família trafegar por aquela rua.

- Palhoça, me promete que essa é a última vez que passamos por aqui. Maldita rua comprida!
- Pai, você faz o que quiser.
- Não faz não! Virou zona agora? – berra a esposa, tirando Palhoça do transe.
- Mais respeito, Eunice – o patriarca tenta, inutilmente, impor alguma autoridade.
- É você quem tá me desrespeitando! Bata na minha cara, mas não me agrida dessa maneira – descontrola-se a esposa, também à beira do pranto.
- Ai, cala a boca, mãe!

Colérica, Eunice fulmina a filha no banco de trás:

- Pela última vez: ninguém te chamou na conversa!
- O seu coração é de pedra.
- Jura?

O tom irônico da mãe faz Babi recuar.

- Quer dizer que eu sou uma mãe ruim? Puxa, logo eu, que acoberto todas as suas confusões.
- Não tem confusão nenhuma.
- Não? Posso contar pro seu pai sobre a sua cirurgia, que ele pagou feito um idiota, pensando que era um tratamento de canal?
- Para, mãe.
- Palhoça, você já ouviu falar em labioplastia?

O pai mantém os olhos lacrimejantes na pista, mas franze a testa, intrigado com a pergunta.

- Não se assuste. Sua filha só quis modificar um probleminha visual que ela tinha entre as pernas. Agora não vai mais assustar os rapazinhos – diverte-se a vingativa Eunice.

Furiosa, Babi ameaça atirar o iPhone na cabeça da mãe.

- Meu Deus! Que merda de conversa é essa? – Palhoça encara as duas, enojado.
- Palhoça, sua filha levantou a mão pra mim! Você viu isso?
- Que cirurgia foi essa, Babi? Agora, fala!
- Pai, olha pra pista.

A celeuma em torno dos grandes lábios da filha adolescente impede Palhoça de enxergar o caminhão que cruza a avenida à frente. O choque arrasta o carro da família por alguns metros.

***

Dois anos após ter a família mutilada para sempre, Babi circula pelo Mandaqui, obcecada pelas lembranças do pai. Passando em frente ao restaurante Cabaça de Mel, depara-se com duas animadas senhoras despedindo-se. Sem querer ela escuta o final do diálogo:

- Não esquece de avisar à Dulce. Espero vocês mais tarde.
- Sem falta, Cidinha.

Ao ouvir a breve conversa, Babi dá meia-volta, abandona a timidez habitual e aborda a senhora que deixa o restaurante.

- Com licença, seu nome é Cidinha?
- Sim. E você quem é, minha linda?
- Bárbara. Talvez você conheça meu pai, o Palhoça.
- Palhoça...
- Raimundo Palhoça. Ele morou aqui no bairro quando era bem novo.
- Claro, lembro! Foi meu namorado na juventude. Como vai o seu pai?

Com as costas da mão, Babi desfere tapa violento no rosto de Cidinha, que cambaleia. O segundo tapa faz Cidinha cair sentada na calçada, com uma flor de sangue na ponta do nariz, e ali ficar até ser socorrida pela amiga. Babi segue andando sem olhar para trás. Não pretendia retornar ao bairro.


quarta-feira, 5 de junho de 2013

Maio de 68


Desacordado após uma explosão no restaurante universitário, Damásio foi levado às pressas ao hospital, com suspeita de traumatismo craniano. Dois dias depois, enfim recuperado, recebeu a primeira visita: Patrick, amigo do movimento estudantil, de temperamento mais leve e ponderado, um tanto debochado às vezes. Damásio não compartilhava o mesmo humor, mas ficou animado ao vê-lo.

- Patrick, meu amigo! Que confusão foi aquela?!
- Relaxa. Uns dias aqui vão te acalmar um pouco, vão até fazer bem.
- Diz aí: quantos feridos?
- Deixe-me ver... mais grave só você. Sua posição geográfica não favorecia muito: perto da cozinha.
- E a Rosa? A explosão foi na hora em que eu conseguia derrubar a barricada que existe entre eu e ela. Se não sonhei, lembro até de um sorriso.
- Ela tá inteira. Só queimaduras leves. Quanto à barricada, não sei se caiu. Ela não comentou nada comigo.

De súbito, o ar apaixonado de Damásio dá vez à expressão vivaz de costume:

- Dessa vez eles se ferraram! Isso vai dar repercussão. – esfrega as mãos o enfermo.
- É verdade! Reparou como andava ruim a comida do RU? Vamos nos organizar pra dar um basta nessa vergonha. Se bem que a explosão já interditou o lugar.
- Patrick, isso é frivolidade! O que aconteceu ali tem um significado maior.
- Frivolidade? Os companheiros merecem comer tão mal?
- Tô dizendo que foi um atentado à minha vida.
- Ah, não se dê tanta importância. Foi um acidente.
- Acidente? Deixa de ingenuidade. Hoje eu sou um líder, o que incomoda muita gente da linha dura.
- Mas o que isso tem a ver...?
- Patrick, o problema não era o purê de batata, e sim nossas atividades. Os explosivos foram plantados no RU por algum infiltrado.
- Foi uma panela de pressão.
- Sim, vivemos em uma panela de pressão.
- Damásio, você tá equivocado.
- Equivocado? Viu o estrago que os estilhaços fizeram em mim?
- Estilhaços?
- Sim, quer ver minhas costas?
- Feijões.
- Oi?
- Feijões não muito bem cozidos. Foi o que atingiu suas costas.
- Para de brincadeira.
- Te juro.
- O ambiente anda tumultuado demais pra você reduzir tudo a...
- Feijões. Uma panela explodiu e o conteúdo atingiu em cheio as suas costas. Na queda você bateu com a cabeça.
- Mas... como assim? Que coisa mais patética!

Percebendo o desapontamento do amigo, Patrick tenta reanimá-lo:

- Mas veja bem, era um cozinha industrial e não era qualquer panela. Nela deviam caber uns 10 litros ou mais de feijão, meu camarada. Uma senhora panela, eu diria!
- E a Rosa, me deixou lá?
- Teve tumulto, todo mundo saiu correndo. Não a vejo desde o dia fatídico.
- Ela não veio aqui enquanto estive apagado?
- Até onde sei, sou sua primeira visita.
- Obrigado pela consideração.
- Cá entre nós, não vai ser com uma rajada de vapor que você vai derrubar a resistência dela.

Patrick nota que o pensamento de Damásio desviara-se da luta estudantil para se concentrar apenas na amiga. Ainda assim, destila o habitual deboche.

- Lembre-se que Trótski levou uma picaretada, cambaleou, mas acabou sucumbindo. Você não! Continua firme na luta, mesmo depois daquela rajada de feijões semi-cozido e efervescentes. - consola Patrick, sem conseguir disfarçar o divertimento íntimo.
- Patrick...
- Fala, meu comandante.
- Some daqui.


segunda-feira, 20 de maio de 2013

Mediocridade calculada


A supervisora de RH recebe Sérgio com um sorriso plastificado.

- Me chamou, Samara?
- Aham, vamos até a sala de reunião pra gente bater um papo.

Sergio sente-se apreensivo.

- Quer que eu peça um café, Sergio?
- Não. Meu tempo tá curto hoje, desculpa.
- Bom, como você deve imaginar, o Thompson achou grave o que ocorreu sábado, quando você abandonou as crianças na fábrica de pretzels. Não era sua obrigação ir, mas como quis ser voluntário, tinha que ter ficado até o fim da visita.
- Samara, por que o próprio Thompson não vem falar comigo? Deixei recado no celular dele no mesmo dia.
- Recebemos reclamações de pais de crianças do Grupo Escolar Sementes do Amanhecer. O Thompson ficou tão chateado que entregou o caso ao RH.
- Peraí, vão me demitir porque não me saí bem como monitor em uma excursão à fábrica de pretzels? Duvido que o Thompson esteja de acordo.
- Calma, vou chegar ao ponto: desde o ano passado, nosso grupo tem sido elogiado por realizar eventos com crianças em condições de vulnerabilidade social e...
- Eu sei dessa conversa toda, menina - interrompe Sergio - Já te disse que o meu tempo tá apertado.
- O Thompson vai entender se você perder uns minutos aqui – rebate Samara  – Como dizia, após o seu abandono, as crianças quase perderam a melhor parte da visita: a degustação de pretzels.
- Quase? Ah, que bom que deu tudo certo.
- Tivemos que acionar outro funcionário com urgência. Algo difícil em um sábado – Samara ignora o sorriso debochado de Sergio e vai em frente – Depois de muito insistir, conseguimos a colaboração do Dimas do TI.
- O dos sete filhos adotivos?
- É. E ele só aceitou porque autorizamos os filhos a irem também. Isso gerou um gasto imprevisto para nós.
- Como assim?
- Os pretzels eram contados.
- Ah.
- Sergio, há tempos o Thompson lhe prepara para um cargo mais elevado, mas observa sua auto sabotagem como um caso de mediocridade calculada, pois você alterna momentos de brilhantismo e desleixo.
- Desleixo? Peraí, agora deixa eu falar! Você sabe o que aconteceu naquele dia? Sabe? A tia que me criou desde os oito anos de idade teve um derrame.

Samara não se impressiona.

- Desleixo sim, Sergio. Logo após ouvir a mensagem, o Thompson ligou para o seu irmão, que desmentiu sua história. Não preciso mencionar o tamanho da decepção, né?!

Sergio não se abala.

- E por não ter dito o motivo real, vocês acham que eu abandonei o posto por desleixo?
- Não seria a primeira vez que o senhor comete error grosseiros quando está prestes a...
- Opa, calma aí! – a veia do pescoço salta - Eu me preparei! Sei tudo sobre essa merda de pretzel, viu?!
- A questão é mais ampla.

Sergio levanta a voz:

- Sabia, por exemplo, que essa porcaria de bolo em formato de laço surgiu nas festinhas da primavera celta? Aposto que não!
- Interessante – responde Samara, inabalável, encarando o papel sobre a mesa.
- E que os monges beneditinos da Renânia e da Borgonha davam como prêmio pra crianças que faziam a lição de casa? - soca a mesa - Também aposto que não!
- Não sabia.
- E tem mais!

Samara esfria a empolgação de Sergio:

- Nada disso importa agora.
- Vou ser demitido?
- Não é nossa política demitir pessoas. O Thompson adota uma linha de gestão mais humana. Por isso, me encarregou de verificar se é ou não um caso de mediocridade.
- Que porra é essa, afinal?
- Potencial desperdiçado por covardia. Alguns chamam também de nanismo motivacional. O Thompson acabou de chegar de um simpósio na Suécia, onde se aprofundou sobre isso esses. Vamos ao questionário?
- Esquece! Não vou ser cobaia das esquisitices do Thompson.

Samara respira fundo e se faz de condescendente:

- Não vai doer – Sergio ameaça retrucar, mas Samara é mais rápida – De um a dez, como foi seu desempenho durante o ensino médio e o fundamental?

Sergio suspira.

- Sei lá. Seis ou sete.

Samara parece gostar da resposta.

- Sergio, você serviu ao Exército, correto? – Sergio confirma com a cabeça – Enquanto estava lá, desejou subir de patente?
- De jeito nenhum. Pelo visto isso não é um questionário padrão, né?!
- Trabalho com investigação.
- Isso se chama espionagem, Samara.
- Você é casado há 5 anos com uma mulher saudável – Samara recorre às anotações – Os dois já passaram dos trinta e cinco, porém não tiveram filhos.
- E daí? O que tem a ver?
- Por que não quis dar esse passo?
- Eu sei lá! Porque não é a hora.
- Medo de consolidar um estado pleno de felicidade?
- Que ideia!
- O senhor teme a paternidade?
- Olha, vamos parar por aqui.

Percebendo o ponto fraco, Samara insiste, agora com doçura na voz.

- Sua mulher tem alguma coisa a ver com o que anda se passando?

Sergio abaixa a cabeça pensativo.

- Pode se abrir, Sergio.
- Samara, eu ando tenso... com medo. Gostaria de voltar pra minha baia.
- Medo de quê?

Sergio esconde o rosto, segurando o pranto. A supervisora de RH tranquiliza-se ao perceber que ninguém os observa através das paredes de vidro.

- Eu desconfio que o meu casamento já era. Mas eu não queria... - Sergio fica vermelho e não consegue mais reprimir as lágrimas.
- O que houve no sábado?
- Me ligaram, disseram que ela tava na praça de alimentação do shopping. Como é que pode, meu Deus?!
- O que ela fazia lá?
- Me enganava! – grita Sergio, estremecendo Samara.

Samara junta seus papéis, enquanto Sergio permanece absorto. Ela se levanta com delicadeza e coloca a mão sobre o ombro dele.

- Sergio, entendo o seu drama, mas foge às minhas atribuições. Vou comunicar o que se passa ao Conselho e aos heads de cada setor. Com todos a par do problema, ficará mais fácil lhe dar apoio psicológico.

Samara deixa a sala sem fazer barulho. Imerso em sua dor, Sergio mantém-se cabisbaixo por alguns instantes. Ao recuperar a lucidez, levanta-se assustado e sai correndo desesperado atrás da supervisora de RH.


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A pergunta primordial



Valéria lava pratos na cozinha. Ao escutar um tranco na porta da rua, fecha a torneira rápido. Seguem-se barulhos de chaves caindo e de passos arrastados pela sala. Imagina ser o marido chegando bêbado, mas a surpresa é ainda mais desagradável.

- Ari? Nossa, que curativos são esses? – desespera-se ao ver o homem escorado pelo porteiro Chico.
- Me coloca aqui, Chico... isso, no sofá. Obrigado.
- Responde, Ari!
- Calma, Val. Deixa eu respirar.
- Peraí, Chico. Não vai embora. Me ajuda a levá-lo pra cama – ordena a esposa - O sofá é desconfortável.

Após mais alguns gemidos e lamentos, o marido está acomodado na cama e Chico de volta à portaria.

- Agora fala. Você sofreu um acidente? Por que não me ligou, homem?
- Val... eu te conto, mas devagar, por favor. Eu tava saindo do trabalho... e queria tomar uma cervejinha.
- E?
- Resolvi entrar naquele pub estranho... o de vidro fumê... como se chama mesmo? – pergunta-se Ari.
- Não enrola. E aí?
- Urgh... minha costela... deixa eu virar, peraí... pronto. Aí tinham quatro caras sentados lá dentro... e um negão monstruoso, perto da jukebox, na penumbra. Ele ficava sorrindo e eu só enxergava os dentes... malignos.
- Desembucha logo, Ari!
- Então os caras me envolveram, pediram cervejas por conta deles e, quando resolvi vir embora, me seguraram com uma conversa estranha. Pareciam mafiosos. Falavam sobre Grécia antiga, tribos indígenas, esfinges e... – Ari aperta os olhos como se não quisesse lembrar.
- Continua.
- Até chegarem ao que eles chamavam de “a pergunta primordial”. Aí me fizeram a maldita pergunta.
- Pergunta? Que pergunta? – Valéria treme de curiosidade.
- Queriam saber se eu prefiriria chupar um pau ou dar o cu. Cristo, que vergonha! – se contorce Ari.
- Ai, não!
- Eu respondi dar o cu, mas achei que fosse só uma pergunta retórica! Urrrgh! – geme Ari ao contrair o abdômem para pegar água na cabeceira.
- Para! Para! Eu não quero ouvir mais nada – Valéria desvia o olhar para a janela e coloca a mão na testa.
- Chupar é um ato muito íntimo, Val.
- Merda! Merda! Merda! – desespera-se a esposa.
- Então o mais esquisitão deles chamou o negão, virou pra mim e disse: Ari, você vai chupar o Lindomar. Ajoelha aí.
- Mas você não escolheu dar o cu, homem de Deus?
- Esses caras eram sádicos, Val!
- E aí, você chupou? Não protestou nem nada? – revolta-se a esposa.
- Eles pareciam armados, Val! Preferi não reagir!
- Então...?
- O negão colocou aquela coisa gigante na minha cara, aí eu não aguentei e... vomitei no pau dele.
- Vomitou no pau do negão? Aff...
- E o negão se ofendeu. Parou de sorrir na hora e me jogou em cima da jukebox. Acho que foi aí que eu fodi minha costela. Depois todos começaram a me chutar. Saí de lá me arrastando, enquanto os caras riam da minha humilhação. Na fuga eu só conseguia pensar em você, meu amor... me sentia tão envergonhado.

Valéria agarra o marido com força e começa a beijá-lo por toda a face.

- Devagar, Val!
- Acho que você foi muito macho, meu amor. Não me envergonho em nada de você – e abraça novamente o marido.
- Val...
- Diz.
- Acho que... ou melhor, o médico acha que é recomendável eu não viajar amanhã. Ok?
- Rá! Eu sabia! – larga o corpo de Ari sobre a cama.
- Val, o que foi isso?
- Sabia que aí tinha coisa. Você sempre com uma desculpa pra não visitar meus pais.
- Você tá duvidando de mim? Como você pode ser tão... desumana?
- Eu até acredito na sua história, mas também sou capaz de acreditar que você vomitou no pau do negão de propósito!
- Você tá brincando, né?!
- Ah, Ari... – sorri amarga – Quem não te conhece que te compre.
- Pirou de vez.
- Ari, sei como você é um cara esperto e oportunista. Talvez tenha sido isso que me encantou em você. Graças ao seu oportunismo temos essa casa e tanto dinheiro. Também graças a ele eu tô cada vez mais sozinha e infeliz. Você não viaja mais comigo, sequer até a Baixada pra ver meus pais.
- Você é louca? Fez toda essa leitura a partir do meu incidente com o negão?
- Você é maquiavélico, Ari! Você olhou pr`aquela pica gigantesca e viu nela uma grande oportunidade de fuga.
- Val... você tomou seu remédio hoje?
- Não me chama de louca porque quem tem problemas aqui é você. Pode ficar aí nessa cama. Eu vou sozinha... e não sei se volto.

Val bate a porta do quarto. Ari acomoda-se em meio às almofadas e sorri triunfante.







sexta-feira, 19 de outubro de 2012

50%


Puta festa na casa de Vitinho Pollidoro. Gaya e Ju enfim conseguem entrar no disputado banheiro.

- O Pollidoro tá me dando brecha, mas o Vitinho Villanueva fez aquela música fofa pra mim - aperta o peito, comovida - Ai amiga, vou  ficar mais loucona, aí eu decido.
- Música pra você?
- É. Garota escarlate, ou menina escarlate, sei lá o nome da breguice.
- Mas o Villanueva não compôs isso pra namorada ruiva dele?
- Querida, ruiva sou eu. Aquilo é uma experiência capilar mal sucedida – Gaya encara o espelho, fatal.

Enquanto retoca o batom, Gaya escuta um barulho surdo, como um pedregulho caindo na água.

- Ah, eu não acredito, Ju! Tá cagando?
- Já caguei. E daí?
- E esse cheiro? Vai pegar mal.
- Ih!
- Que foi?
- A descarga.

Com o rosto restorcido de repugnância, Gaya larga a maquiagem e aperta a descarga furiosamente. Nada.

- Gaya, dá licença – Ju afasta a amiga e abaixa a tampa do vaso sanitário – Pronto. Abafa o caso. Bora?
- Bora é o caralho! Cheio de boy querendo usar o banheiro e essa merda aí boiando, fora esse cheiro. Vão pensar que fui eu.
- Não. Fifty-fifty.
- Oi?
- 50% de chances para cada uma.
- Filha da puta! E se o Vitinho Pollidoro entrar agora? Vai olhar isso aí, associar a mim e ficar broxado.
- Por acaso você vai trepar com o Pollidoro hoje?
- Por que não? Tô na festa dele, na casa dele e o babaca só falta lamber minha bota.
- Olha, o Pollidoro deve estar acostumado a encontrar merda no banheiro. Afinal, a descarga dele nem funciona.
- Mesmo se não for ele. Pode ser o Caio, o Macarrão, o Guto, o Vitinho Villanueva... E pior: podem entrar todos pra cheirar pó. Resolve aí, pelamor! Tenho uma reputação.
- Gaya, você tem quase 30, fuma, bebe, cheira e cai na sarjeta. Não é mais aquela paquita não. Larga de ser ridícula!
- Vai se preocupar por que, né? Seu namorado peida e arrota em público. Você também perdeu os pudores.
- E você é uma vaidosa doentia!
- Se você fosse bonita também seria vaidosa.
- Piranha! Não sei por que eu te aguento!

Batidas impacientes na porta.

- É o Vitinho, escutei a voz. Não sai agora! – sussurra Gaya.
- O Pollidoro ou o Villanueva?
- Para de me zuar e faz alguma coisa.
- Faz você! Minha "reputação" já tá cagada mesmo.
- Você começou isso!
- Infeeeerno! – Ju enfia a mão na bolsa - Toma, faz uma pá com esse flyer e empurra.
- Empurra o quê?
- A merda. Empurra pra dentro do cano. Faz uma canoinha assim, ó.
- Eu? Mas a merda é sua.
- É isso ou fifty fifty.

Gaya trinca os dentes e encara a amiga cheia de cólera.

- Tô te ajudando, Gaya. O trauma vai fazer de você uma pessoa melhor.
- Me dá essa merda de flyer, sua vaca!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Laura decide partir


- Não sei que força magnética é essa que influencia os casais dessa cidade. Aqui a solidão parece mais assustadora.
- Essa força chama-se dependência financeira, querido. Também conhecida como covardia.
- Laura, larga essa mala e olha pra mim: você acha que tá sendo leal comigo?
- Rodrigo, deixa de cinismo! Só vivemos juntos por falta de grana. Mas tudo tem um limite, cara.
- Muito conveniente! Você arruma um emprego, vai morar com seu amante e me deixa desempregado com as contas pra pagar.
- Amante? Hahahahá! O Alejandro é MEU NAMORADO! E você devia arrumar alguém também. Quem sabe a felizarda não divide as despesas contigo?
- Pensei que pelo menos fôssemos amigos, mas me virar as costas nesse momento... e por causa de um sujeito chamado Alejandro, é ridículo demais!
- Ridículo é você! Já sofri muito com seu comodismo. Temos que assumir nossas próprias vidas.
- “Assumir nossas próprias vidas”? Leu isso no facebook? Você era um trapo há meses atrás, quando EU segurei sua onda.
- Rô, nós dois éramos trapos quando nos separamos! Só que você continua nessa. Não evolui!
- Tá confiante agora porque aquele fresco resolveu te assumir?
- Ninguém me “assumiu”, seu recalcado! Cruzes, que vocabulário idoso é esse?!
- Alejandro é uma fraude! Um skatista de trinta anos que ganha a vida num bistrô não pode ser encarado como homem de verdade. Desculpe.
- E você, pode? O que faz da vida além de beber, fumar e procurar vaga de emprego no twitter? Quais são seus planos para hoje? Me conta!
- Bom, à tarde vou ver uma exposição de maquetes no metrô Tucuruvi, depois vou à gibiteca da Vergueiro. Me disseram que lá tem umas coisas raras do Flash Gordon.
- Nossa! Imperdível, hein!? – ironiza Laura, com sorriso amargo.
- Enquanto isso o Alejandro deve estar servindo mini alcachofras com vinho rosê no bistrozinho. Ele sim tem uma vida fascinante! – rebate Rodrigo, cheio de rancor.
- Suas piadas com o Ale já perderam a graça. Agora soam apenas como inveja.
- Batatinha, agora é sério: larga essa merda de mala aí!
- Não me chama assim! Sem intimidades daqui pra frente.
- Já sei! Temos um quarto livre, não temos? Eu durmo nele e você e o Alejandro ficam com o maior! Meu orgulho sairia ferido, claro, mas o aluguel ficaria mais baixo. Que tal?

Laura fita Rodrigo boquiaberta. Nas horas tensas, nunca sabe se ele está brincando. Diante da sincera expectativa do ex-namorado, se retorce de desgosto.

- Ah, tenha dó! Acha que o Ale iria topar? Ele não é duro não, viu?!
- Então me leva junto! Qualquer cantinho tá bom.
- Rô, para de se rebaixar. Assim você me corta o coração.
- Deixa pra ir outro dia. Olha lá fora, vai cair uma tempestade!
- Por que você faz isso comigo?
- Não chora, batatinha... vem cá... larga essa mala e deixa de bobagem. Isso, muito bem.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

O ritual


Com um copo de uísque na mão, Felipe fica surpreso ao atender a porta do sobrado onde mora.

- O senhor veio mesmo, seu Takeshi?!
- Mashida!
- Oi?
- Meu nome é Mashida.
- Desculpa.
- Como a gente faz com os cães?
- Pensei que o senhor entendesse de animais.
- Muito pouco.
- Acho que basta deixar os dois juntos, sossegados, a sós... não?
- Seria má ideia.
- Ué, por quê?
- Porque não vamos saber se cruzaram.
- É verdade. Não rola um cigarrinho no after?
- O senhor diz cada coisa... – reprova o risonho seu Mashida.
- Entra aí! Vamos decidir aqui dentro.
- Espaçosa a sua casa.
- Sim. Já me apresentei?
- Felipe, né? Tenho boa memória.
- Então... desculpa a abordagem no meio da rua, mas é que o Scotch já tá velho e precisa cruzar logo.
- Entendo.
- E tá difícil achar fêmea de setter como a sua.
- São animais raros hoje em dia.
- Vê se eu ia imaginar que tinha uma tão perto da minha casa?! Aliás, que bonitinha ela é, hein!? – Felipe acaricia a cadela e por pouco não leva uma mordida.
- Obrigado.
- Mas o senhor, como oriental, deve saber conduzir rituais.
- Esse ritual não pertence à minha cultura.
- Hahahaha... claro! 
- Seu cão não parece muito interessado, né!?
- Talvez sua cadela não seja tão atraente assim.

Seu Mashida fecha a cara. 

- Vamos beber enquanto rola a sedução? Cervejinha, uísque...?
- Não costumo beber tão cedo.
- Cedo? Mas hoje é sábado!
- Meus netos me esperam em casa.
- E daí? Eu vou tomar mais uma dose porque esses dois aí... Vai lá Scotch! 
- Ele continua desinteressado.
- Calma aí, sem pressão! São só adolescentes, porra! 
- Que foi que eu fiz? 
- Já sei! Na internet deve ter tutorial disso. Vai que precisam de Barry White, ou velas aromáticas, né?!
- Se a pesquisa não for demorar...
- Putz, esqueci... meu note tá no conserto. Vamos pesquisar na sua casa?
- Não é boa ideia.
- Mas o senhor não mora na vizinhança?
- Não é boa ideia.
- Bom, então senta aí. Vou colocar uma musiquinha ambiente pro senhor e o casalzinho relaxarem.

Começa a tocar uma música new age repleta de sons pastoris estranhos. O anfitrião sorri divertido para seu Mashida, que nem ameaça se sentar. Apenas espicha o olhar pela casa sem conter a curiosidade:

- Sua esposa morava aqui com o senhor, não?
- É.
- Separaram?
- Isso.
- Sem filhos?
- É.
- Vive sozinho numa casa desse tamanho?
- Acertou de novo!
- Consegue viver sem uma família nessa idade? Pra mim família é fundamental.
- Meu amigo japa, pra que tanta pergunta se já deve estar por dentro de tudo? Sei como são vocês.
- Não entendi. Vocês quem?
- Vocês, vizinhos! Farejam fraquezas de gente de bem pra poder arruiná-las moralmente.
- Você bebeu demais, meu jovem. 
- Aqui dentro eu bebo o quanto eu quiser. Vai espalhar que encho a cara às três da tarde? Caguei!
- Sua vida não me interessa - seu Mashida se dirige à porta da rua, mas volta ao notar que a cadela ficou pra trás.

Com voz pastosa, pontuada por gestos amplos, o dono de Scotch continua seu desabafo etílico:

- Afinal, vocês vieram lááá do outro lado do mundo pra julgar a gente? É isso? 
- Peralá, eu nasci aqui! Você é que veio de Minas!
- Viu só? Como sabe que vim de Minas? 
- Percebi pelo sotaque, seu doido! - levanta a voz pela primeira vez o visitante.

Com lentidão ébria, Felipe dá dois passos em direção a seu Mashida, que ao recuar esbarra no copo de uísque sobre a mesa. O copo se espatifa no chão.

- Não sou menos digno que você! - brada Felipe de forma patética.
- Olha, quem precisa trepar é o senhor, e não o cachorro – rebate seu Mashida, juntando educadamente os cacos de vidro do chão com um guardanapo.
- Eu preciso mesmo. A ideia era traçar o senhor enquanto os cães se embolavam no quintal. 
- Me respeite! – aponta um dedo ameaçador para Felipe – Vem Cereja! Vambora!
- Cereja? Ah, mas se eu soubesse que ela tinha esse nome de puta não teria oferecido ao Scotch. Não mesmo! - debocha.
- Não chega perto! Vem, Cereja!
- Alá! Alá! Tão trepando! Larga ela aí, seu Mashida!

Louco de raiva, Seu Mashida ignora os apelos de Felipe e arranca a cadela da cópula. O indignado Scotch ainda morde debilmente a mão do intruso.

- Viu, japa?! Cê teve o que merecia! Empata foda do caralho!
- Seu cachorro não sabe morder. É como o senhor, só dá showzinho. Passar bem!

Seu Mashida sai arrastando Cereja portão afora. Desesperado, Scotch persegue os dois aos uivos.

- Volta, Scotch! Não vale a pena, rapaz – grita Felipe, sem convicção.

Culpado, o dono da casa sai em busca de outra dose, enquanto ao cão resta lamber o uísque do piso.