A plateia majoritariamente feminina do Anfiteatro Radamés Pires suspira, lamentando pelo fim da sessão de perguntas ao mestre e escritor Amadeu Mello, acerca de seu estudo sobre Chico Buarque, em evento que celebra os 70 anos do artista.
- Minhas
caras e meus caros, devemos estar alertas contra debates sustentados por
inteligências aeradas, pois isso só serve para acirrar o Suflair Ideológico. Lembrem-se
disso. Passo a palavra ao professor Abyacir Cordeiro.
Em meio a palmas entusiasmadas, o professor Abyacir, à vontade como mestre de cerimônias,
sobe ao palco para dar prosseguimento ao evento.
- Quem quiser saber mais sobre o trabalho de pesquisa Aspectos Interdisciplinares
de Chico Buarque e a Ressignificação da Epistemologia Pós-Estruturalista no
Discurso Feminista Luso-africano, pode acessar o portal da nossa biblioteca. Certo,
meu excelentíssimo Amadeu?
- Isso mesmo, querido.
- Agora todos estão convidados para a recepção
na sala Pintassilgo. Serão servidas iguarias bem brasileiras em homenagem a
esse artista brasileiríssimo que é o Chico. Tem caldo de mandioquinha com taioba,
rocambole de marrom glacê e, para arrematar, uma cachacinha de Berimboca dos Ferros,
na zona da mata pernambucana. Aproveitem!
É possível escutar a plateia inteira a salivar,
exceto por um homem de jaqueta jeans encardida que, de pé na primeira fila,
agita os braços, clamando pela atenção do mestre de cerimônias:
- Meu filho, já encerramos as perguntas – lamenta
o professor Abyacir.
- Eu sei, mas só queria contar um causo pro nosso mestre.
- Sinto muito.
- É rápido.
- Vamos ouvi-lo – interfere o palestrante, magnânimo,
fazendo as pessoas se sentarem novamente - Qual o seu nome, rapaz?
- É Elias, Elias Taboada – olha ao redor, como a
conferir se a menção de seu sobrenome provocara algum efeito. Nada de especial
além de dois bocejos, um espirro e muita impaciência.
- Pode falar, Elias.
- Bom, não sei se o senhor chegou a ouvir falar do meu
tio, o Tenente-Coronel Taboada...
Amadeu Mello nega com a cabeça, cheio de afetação.
Elias prossegue:
- Meu tio foi muito respeitado dentro nas forças
armadas, lá pelos anos 60. Comandou várias operações no Rio. Não ouviram falar
mesmo? Vivia em Copacabana, jogava vôlei de praia…
- Filho, desculpe interromper, mas não vejo a
relação disso com o trabalho de pesquisa apresentado. Poderia ser mais objetivo?
Nosso estômago tá feito turbina de avião – gargalha Amadeu, gerando palmas entusiasmadas
da plateia, igualmente faminta.
- A relação
dele é com o Chico.
- Claro,
claro… uma relação pouco amistosa, imagino.
- Ao
contrário, ele e o Chico eram muito próximos – olha enigmático para os
presentes, que mais uma vez se mostram inexpressivos.
- Elias,
você tem alguma pergunta a fazer?
- Não, mas
se o senhor gentilmente me concedeu a palavra, vai deixar que eu chegue ao fim,
certo?
Disfarçando
a contrariedade, Amadeu pigarreia e sinaliza para Elias continuar.
- Obrigado,
Mestre. Nunca falei sobre o assunto em público porque seria um desgosto enorme pra
minha falecida tia. Porém, hoje pertenço a este grupo de estudo, então tenho
que trazer à tona que meu tio comeu o Chico. Mais de uma vez, inclusive.
Risadas nervosas
na plateia.
- Eu ouvi direito? – indaga Amadeu para o professor Abyacir, congelado em sua fleuma.
- Eu tenho
cartas e documentos – tenta emendar Elias. No entanto é abafado pelo ruído das
pessoas, divididas entre irritadas, divertidas e indignadas.
Ligeiramente
ressentido, talvez por deixar de ser o centro das atenções, Amadeu retoma a
palavra:
- Querido,
você não está mais na quarta série, tem até fios grisalhos. Não faça isso com a
gente. Pra que ridicularizar o debate tão elevado que tivemos aqui hoje?
- O caso
deles não foi nada comparado à relação com a Marieta, admito. Durou pouco tempo,
mas foi intenso e explica muita coisa – contemporiza Elias.
Um senhor de
olhos divertidos por trás dos óculos levanta-se na segunda fila, interrompendo
a conversa:
- Com
licença, sou historiador, posso ver a sua pasta de documentos?
- Tá tudo
aqui: cartas, fotos... olha, este fantasiado de Bethânia na casa do meu tio é o
Chico, pode conferir – aponta uma das fotos e entrega a pasta ao historiador.
Uma estudante
de saião indiano e mandala tatuada na parte de trás do ombro também resolve se
meter:
- O Chico é
uma rara voz masculina a insurgir contra o patriarcalismo vigente. Ao colocar a
mulher na primeira pessoa, ele revelou o flagelo feminino com nuances sutis e
poéticas. Querer desmoralizá-lo é querer desmoralizar todas nós. – desabafa a
moça, coberta por um reluzente verniz de dignidade.
- “Desmoralizar”
por quê? Tio Taboada era muito bonito, inclusive várias mulheres passaram pela
mão dele. E famosas! Tipo a Maysa, a Emilinha... dizem que até a Leila Diniz.
- “Passaram
pela mão”? Peço respeito às mulheres presentes. Misoginia aqui, não! – intromete-se
uma senhora, com pinta de professora de ensino fundamental disciplinadora.
- Senhora,
eu digo mulheres, mas coloco na
conta homens também, tipo o Chico.
- Chico foi
homem o bastante para desafiar o regime! Recolha-se à sua insignificância e retire-se!
– ordena a moça da mandala tatuada, obscurecendo o ar digno.
-Não sem
antes experimentar o caldo de mandioquinha! – retruca Elias.
O professor
Abyacir acha conveniente intervir:
- Por
favor, não transformem nosso anfiteatro em um ringue.
- Professor,
me admira o senhor e o mestre Amadeu darem espaço pra esse idiota vir aqui
tumultuar, exaltando um milico de merda – sai do sério de vez a senhora disciplinadora.
- Vou
ignorar a ofensa porque vocês foram educadas a subestimar militares. Porém eles
não eram os ignorantes que todo mundo pensa. Tinham contato com artistas e
entendiam sim os versos do Chico – explica Elias, domando parte das moças
exaltadas com sua serenidade.
Uma
terceira mulher, de longos dreads e bata africana, usa de sarcasmo para
hostilizar Elias:
- Acha que vai impressionar alguém aqui com piadinha de vestiário
masculino? Volta pra tua tumba,
reaça!
Amadeu e
Abyacir imploram às pessoas que dirijam-se à sala Pintassilgo, mas o bate-boca
continua, para deleite da turma ao fundo do anfiteatro, mais a fim de ver o
circo pegar fogo.
- Vocês são
muito engraçadas. Só defendem minorias até descobrir que o ídolo de vocês foi
violado? E ainda me chamam de reaça...?! – desdenha o sobrinho do Tenente-Coronel
Taboada.
Um jovem rapaz
se levanta das fileiras do meio para também se manifestar:
- Como
homossexual, repudio muito a postura preconceituosa da plateia. Que mal há no
Chico ser gay?
- Até que
enfim alguém sensato – alivia-se Elias -
Homofobia é um bagulho que me revolta.
Libertando-se
da gelatina da omissão, Amadeu busca apaziguar os ânimos, já que a tentativa de
ignorar Elias falhara:
- Por favor,
meu rapaz, não se trata de preconceito... Você tem o direito de falar o que bem
entende, só abomino provocação barata. Conta sua história até o fim para vermos
se faz algum sentido.
- Mestre,
tô tentando dizer que há muita passionalidade na história do Chico com o meu
tio. – vira-se com ar professoral para as moças com quem discutira - Para o bem e
para o mal, minhas caras.
- Prossiga.
- Tio
Taboada amava as músicas do Chico e se esforçou muito para dobrar os outros fardados,
que entendiam perfeitamente as letras de protesto.
- Como assim?
- Ele evitou
o exílio do Chico por muito tempo. Mas claro que não foi só por amor à música. Teve cu no meio
também, aí já viu, né?!
- Você está
sendo chulo e ignorante – retruca Amadeu, tendo em seguida que conter nova
insurgência feminina - Shhh... gente, silêncio, por favor. Ele vai concluir.
- Não sou
ignorante. O Chico só se exilou quando perdeu o apoio do tio Taboada, mas ele mesmo
provocou isso.
- Não entendi.
- Chico
dedicou várias musicas ao meu tio, mas uma em especial desceu quadrada.
- Qual? –
pergunta Amadeu, com a curiosidade atiçada.
- Retrato em Branco e Preto. Foi feita depois que a Marieta descobriu o caso dos dois. Ali tem várias referências à vida íntima com meu tio.
- Essa música é belíssima.
- Meu tio não achou. Se sentiu exposto, aí o Chico teve que tirar o time de campo, acalmar a Marieta e tal. Mas a história não acaba aqui.
Amadeu faz uma mesura cínica para Elias permancer à ribalta.
- Retrato em Branco e Preto. Foi feita depois que a Marieta descobriu o caso dos dois. Ali tem várias referências à vida íntima com meu tio.
- Essa música é belíssima.
- Meu tio não achou. Se sentiu exposto, aí o Chico teve que tirar o time de campo, acalmar a Marieta e tal. Mas a história não acaba aqui.
Amadeu faz uma mesura cínica para Elias permancer à ribalta.
- Quando voltou, Chico fez “Jorge
Maravilha” como indireta pro Médici, e atingiu meu tio em
cheio.
- Hahaha! Sinto desapontá-lo, mas essa música foi feita pra filha do Geisel.
- Engano seu. Quando o
Chico ficava putinho com a indiferença do tio Taboada, dizia que meu tio
não passava de uma filhinha do Médici. Daí, por rancor, fez aquele versinho enciumado: “Você
não gosta de mim, mas sua filha gosta”.
- Eu não
sei se me espanto mais com a sua infantilidade ou com a sua audácia, meu caro
Elias.
Risadas despudoradas
começam a surgir no fundo do anfiteatro. Entretanto, Elias insiste na seriedade
do assunto:
- Atacou meu tio
por recalque e não segurou a bronca. O romance teve que acabar, apesar das várias cartas escritas pelo Chico, pedindo perdão.
Enquanto
Amadeu revira os olhos, o historiador de olhos divertidos, até então alheio à
balbúrdia do anfiteatro, reaparece um tanto assustado, um tanto admirado, e
opina:
- Com
licença, mestre, podemos questionar as consequências práticas da relação do tio
do rapaz com o Chico, mas é inegável que ela existiu, e parece ter sido bem
profunda.
- Isso é um
disparate – grita a moça da mandala tatuada.
- É a letra
do Chico mesmo – afirma o historiador, sacando uma das cartas de dentro da
pasta - Nessa aqui, por exemplo, ele dizia ao senhor Taboada que amava o
exílio, porque podia ficar lá bebendo e fumando o dia todo enquanto aqui no
Brasil todo mundo o via como herói.
- Puro
despeito – destila mágoa Elias - Meu tio fez o que pode por
esse ingrato.
- O Chico é
mais homem que vocês todos, simpatizantes da ditadura, corja fascista! – ataca
a senhora raivosa.
- Por favor,
não vamos transformar isso aqui em uma Comissão da Verdade sobre a sexualidade
do Chico – suplica Amadeu.
- O senhor
quer ver as fotos? – Elias estende a pasta para Amadeu.
- Não,
obrigado. Só quero saber por que diabos eu nunca ouvi falar do seu tio. Se
ainda fosse um milico famoso.
- Costumo
dizer que ele era uma mistura de Luis I, rei burguês da França, com o Oskar Schindler,
que livrou a cara de uns judeus, só que com piroca nervosa, né?! Porque assim fica
mais fácil fazer o bem.
- Ainda que
ele tenha comido o Chico, não seria suficiente pra ter tanta influência assim.
- Ele tinha
um trunfo.
- Qual?
- Segundo
meu pai contou, tio Taboada também comeu o Médici.
A ira das
estudantes transforma-se em leves apupos de cinismo, enquanto o professor
Amadeu abaixa a cabeça, em mais um de seus gestos afetados, e aciona seu fiel
escudeiro:
- Professor
Abyacir, querido.
- Pois não,
mestre.
- Traz a
cachacinha de Berimboca dos Ferros.
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