7:47
Diego interrompe o despertador do celular, vira-se na cama e afaga Ingrid, esfregando-lhe a barba no pescoço e na bochecha. Na orelha dela, sussurra, tentando conservar a atmosfera doce:
- Didi, tenho que ir. Pode dormir mais um pouco.
8:31
Sentada na cama, Ingrid passeia os olhos pelo quarto de Diego, cativa-se por cada detalhe, menos pela inadequada action figure do Motoqueiro Fantasma sobre a cômoda. Quase tudo bonitinho, estiloso e amigável. Dormira ali só por três vezes, mas já se sentia incrivelmente à vontade, reflete, apalermada, ainda ignorando o quanto está atrasada para trabalhar.
8:53
Saindo do chuveiro, Ingrid se contorse de dores na barriga. A noite pode até ter sido inebriante, o encaixe perfeito e tudo mais, porém, goulash, cerveja de trigo e paleta mexicana jamais formariam uma boa combinação para o jantar, anota mentalmente. E o pior: devido à hora, nem sobraria tempo para uma nova ducha. Não seria isso a estragar o dia. Não, isso não, ri consigo mesma, sentada no vaso sanitário em meio a calafrios.
A situação começa a perder a graça quando Ingrid puxa a descarga e nada acontece. Os calafrios se intensificam.
- Fo-deu - deixa escapar.
A situação começa a perder a graça quando Ingrid puxa a descarga e nada acontece. Os calafrios se intensificam.
- Fo-deu - deixa escapar.
9:10
Vasculha a cozinha até achar sacolas plásticas. A súbita falta d`água não é suficiente para deixá-la em pânico. Até pragueja contra o governador e a Sabesp, mas sem desanuviar-se da satisfação. Foco! Foco é tudo que precisa, evoca para si. Com uma das sacolinhas captura o maior elemento do vaso. O segundo dá mais trabalho, pois insiste em atocaiar-se na boca do cano, tal qual uma moreia a preparar o bote. Em outra circunstância estaria terrivelmente enojada, constata. Missão cumprida: elementos aprisionados na sacola. A última etapa é depositar o desagradável legado em alguma lixeira distante dali.
Vasculha a cozinha até achar sacolas plásticas. A súbita falta d`água não é suficiente para deixá-la em pânico. Até pragueja contra o governador e a Sabesp, mas sem desanuviar-se da satisfação. Foco! Foco é tudo que precisa, evoca para si. Com uma das sacolinhas captura o maior elemento do vaso. O segundo dá mais trabalho, pois insiste em atocaiar-se na boca do cano, tal qual uma moreia a preparar o bote. Em outra circunstância estaria terrivelmente enojada, constata. Missão cumprida: elementos aprisionados na sacola. A última etapa é depositar o desagradável legado em alguma lixeira distante dali.
9:13
Mesmo apressada, Ingrid se permite escrever um bilhetinho. Para isso, larga a sacolinha de cocô sobre a pia e vai de novo revirar a casa, agora em busca de caneta e papel. Pronto. Pausa rápida. Escreve “A noite foi sensa!”. Afixa na geladeira. Não se sente satisfeita. Coloca uma emenda no bilhete: “Vc é the best! Beijos, Didi”. Cola de novo. Sai do apê e bate a porta. Já no elevador, arrepende-se da mensagem “meio bobinha”. Está feito, afinal, a porta trava ao ser batida por fora, conforma-se.
10:43
Após sofrer no trânsito, Ingrid chega à agência onde trabalha. O sorriso descontrolado, embora menos radiante, intriga sua assistente.
- Noite boa, Didi?
- Ai Bia, dá pra notar? Tô que não me aguento. Por mim nem viria hoje, ficaria só suspirando em casa.
- Uau! Foi com aquele… o do show do David Guetta?
- Ele mesmo.
- Então, agora vai?
- Se o mundo não sabotar, agora vai! – empolga-se.
- Não quero cortar seu barato, mas…
- O quê? A reunião das três? Já tô ligada.
- Anteciparam pras duas. E o Juarez quer falar contigo antes.
- É coisa séria? – corre para o banheiro, sem esperar pela resposta.
10:52
A felicidade dá lugar à aflição. E não apenas pelas terríveis cólicas. Desesperada, pergunta-se como pode ter esquecido um saco de cocô ao lado do bilhete romântico. Briosa a remendar a situação a qualquer custo, ergue-se do vaso. Mas a fraqueza a faz desabar novamente, abatida e derrotada. Se há um lado positivo nessa história, pensa, é que pelo menos conseguira cagar sólido pela manhã. Mas agora isso nem é mais uma vantagem, conclui.
11:05
- Macarrão de massa de banana verde é 98% menos calórico que o normal, não tem glúten e controla intestino irritável.
- Bia, nao quero controlar meu intestino. É só uma diarreia! O que eu preciso é entrar naquele apartamento.
- Esqueceu o que lá?
- Uhm… melhor nem falar.
- Liga pra ele, pega a chave. Acabou o problema, ora.
11: 12
Quase desmaia ao escutar o aviso de caixa postal do celular. Tenta de novo. Agora chama. Respira aliviada.
- Diego!? Oooi… sim, lindo, também adorei. Imagina, imagina… desculpa ligar assim, no meio do dia, mas tenho um probleminha. Nada grave. Esqueci o… a minha chave… Sei, sei. NÃO! Preciso ir antes, se não se importar, claro. Tem chave reserva na portaria? Então sussa... Valeu, meu lindo! Ah, mais uma coisa: que horas você chega?... Quatro e meia? Mas tão cedo? Hehehe… claro, claro. Bom, chego antes! Beijo, beijo!
11:34
- Nossa, Didi, tá pálida!
- Bia, vem aqui comigo – puxa a assistente para um canto da sala e susurra – Eu vou ter que dar uma fugida, surgiu uma urgência, mas chego a tempo pra reunião, eu acho...
- Bom, se você diz… mas e o Juarez? Ele tá na sua cola.
- Ai, me esqueci disso. Explico pra ele pelo whats – pega a assistente pelos ombros - Você não me viu, ok?
12:02
Pega de surpresa, acuada em sua mesa, Ingrid não sabe o que responder a seu chefe.
- E aí, Didi, Pizza Hut ou Almanara?
- Mas o que…?
- Vou pedir comida. Assim já vamos repassando a apresentação.
- É que eu não posso…
- Regime, né? Então Almanara.
- Como assim regime? Não seja grosso! – revolta-se - Inclusive devo estar ainda mais magra hoje.
- Fecho com Pizza Hut.
- Juarez, já tenho almoço marcado. Desculpa.
- Como assim? A cliente tá vindo aí.
- Não demoro.
- Consegue voltar em quarenta minutos?
- Bom, não vou mentir pra você…
- Didi, é concorrência!
- Segura essa pra mim.
- Como segurei na semana passada?
- Semana passada fiquei doente, Juarez, não mistura as coisas.
- Doente em Maresias?
- Como assim? Como assim doente em Maresias? O que você…?
- Seu namorado, ou sei lá o que, postou fotos de vocês, com data e tudo.
- Tem algum engano nisso aí.
- Você já foi mais esperta.
13:21
Chove muito. Ingrid circula pela Marginal com pouca visibilidade da pista. Consulta o relógio. Vai dar tempo, tranquiliza-se.
14:12
Finalmente trafega pelo viaduto que a tira da Marginal. No entanto a rota para o Morumbi permanece travada. A aflição volta a causar-lhe efeito desagradável nas entranhas. Não há tempo para achar sítio apropriado. A Picanharia Pentagrama é o único estabelecimento com vaga por perto. Sente mau presságio quanto ao banheiro do local.
14:45
- Tudo bem aí, moça?
- Não abre a porta! – grita Ingrid, de dentro do banheiro imundo.
- Não vou abrir, só queria saber se estava viva.
- Pois estou.
- Tem gente querendo usar, e você nem cliente é.
- Jesus! – irrita-se - Então me vende uma água.
- Mais alguma coisa?
- Tipo o que, meu senhor? Uma picanha?
15:10
Agora corre um escuro e caudaloso rio pela rua onde tinha estacionado. Amedronta-se diante da correnteza insana. Só toma coragem após consultar o relógio.
Com água quase até os joelhos, sentindo muito nojo, recordando de histórias terríveis sobre leptospirose e moléstias afins, dobra a esquina, mas… onde está o carro?, pergunta-se, chocada.
- Ingrid, de São Paulo… Pode me socorrer, por obséquio? Meu carro foi roubado, ou levado pela correnteza, sei lá... Não, não tenho o número da apólice… Sem sistema? Tá de brincadeira, né?! Tô aqui na chuva, suja, precisando de auxílio e… o quê? Ah, sente? Sente mesmo? Escuta, querido, enfia seus sentimentos e seu sistema no cu!
15:51
Colocara sob risco seu emprego, enfrentara trânsito e enchente, tivera o carro roubado e, mesmo assim, muito provavelmente, perderia também o novo amor. Nesse estado pessimista, cheia de dó de si mesma, presencia dois pequenos milagres: a aparição de um taxista gentil e, o mais espantoso, oferecendo uma corrida, mesmo em meio àquele dilúvio. Comovida, Ingrid entra no carro.
- São só 4 quadras, moço. Vou tentar não molhar muito o seu carro.
- Preocupa não, moça.
Ingrid chora baixinho.
16:07
- Oi, sou amiga do Diego. Ele está?
- Seu nome?
- Ingrid.
Portão é aberto.
- Boa tarde, o Diego já chegou?
- Ainda não.
- Ai, ufa! Então, não sei se ele avisou, é que deixei uma chave aí e precisava pegar.
- Ele ligou avisando. Um momento – vai até um cômodo no fundo da portaria e volta com a chave do apartamento 41.
Entre tantos fracassos, pelo menos um sucesso teria. Sucesso no amor, azar no resto, para variar um pouco, anima-se.
16:12
A herança deixada fedia, e muito, empesteando toda a cozinha. Antes de ir embora com a maldita sacolinha, causadora de tanta confusão, Ingrid dá um pulinho no banheiro para verificar o semblante. Vaidosa como sempre, tenta corrigir o rímel borrado, mas apavora-se ao ouvir chaves na porta. Fica paralisada. Cerra a porta do banheiro. Escuta risos. É a voz de Diego... e de uma mulher. Com certeza entraram pela garagem e não têm conhecimento da presença dela. Cachorro, balbucia para si, mordendo os lábios de decepção.
Os dois entram no quarto e intensificam as gargalhadas. Ligam o som: Use Somebody, do Kings of Leon, mesma música que ouvira com ele na noite anterior.
Arrasada, se esgueira até a porta da rua.
16:23
Os dois entram no quarto e intensificam as gargalhadas. Ligam o som: Use Somebody, do Kings of Leon, mesma música que ouvira com ele na noite anterior.
Arrasada, se esgueira até a porta da rua.
16:23
Cruza o saguão do prédio humilhada, sem se separar da constrangedora sacolinha. No portão da rua, confere se o porteiro ainda a observa. Como não o vê, deposita a sacola dentro da caixa de correio de número 41.
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