- Afe… não te falei,
Renan? Isso é talco!
- Vamos ter que levar
só a birita mesmo.
- Hoje
eu vou lá. Quero o "du bom" que ele disse que tinha ou meu dinheiro de volta.
Já é a segunda vez que o filho da puta me passa a perna.
- Surtou, Luca? A gente
atrasado pra festa e você querendo levar navalhada na cara.
- Foda-se! Não vou passar
recibo de otário pro Menininha. Mas chego de leve, na conversa.
- Menininha?
- Sim. Carlos
Menininha, um tipinho inacreditável da rua Paim. Vai temer um cara com
um apelido desses?! Apesar de ter fama de sinistro.
- Por que o apelido
ridículo então?
- Vira esse copo aí.
- Peraí, não vou
entrar nessa roubada com você.
- Vai vacilar? Cheirar
você queria, ou não?
Presos no trânsito da
rua Augusta, Luca e Renan tentam encontrar uma vaga.
- Pele branquinha,
cabelo chanel, sardas... é assim que
você descreve a figura sinistra que te vende pó?
- E acho que ele usa
rímel, mas aí pode ser meu cérebro avacalhando.
- Então é um traveco!
- Não é. A roupa, o
jeito, é quase tudo de homem. Ele só é meio... uhm... angelical. Tipo uma
criança doentia, sabe?
- Um traficante
angelical da Paim. É isso?
- Bom, você vai ver. Olha ali a vaga!
Estacionam e vão
andando até a Paim, uma rua sem saída tomada pelo lixo, destoante da vizinhança
civilizada.
- Rua porca, hein?!
Parece que passou um bloco de carnaval por aqui.
- Olha ele lá - aponta discretamente - Na mesa
do canto.
Carlos Menininha era
fiel à descrição: físico delgado, baixa estatura, quase sumia em meio aos demais. Estava concentrado, escrevendo em um bloco de papel,
observado de perto por um casal bronzeado em trajes hippies. Ele termina o que
parece ser a caricatura do casal, entrega aos dois, que agradecem, riem um pouco e vão embora
satisfeitos. O traficante retribui com a cabeça, ignorando a lenta aproximação
de Renan e Luca.
- Para de rir, Renan.
- Desculpa... mas eu não consigo. Ele é engraçado demais.
Olha esse cabelo lisinho de Cleópatra!
- Shhh... só eu falo
agora!
Menininha ergue os
olhos para os visitantes. Com cândida solicitude, pergunta:
- Querem que eu faça
uma caricatura de vocês?
Renan nota que além
das sardas, Menininha possui longos cílios. Luca não se atém a tais
detalhes, vai direto ao ponto:
- Não finge que não me
conhece - crispa os lábios de raiva - Eu voltei e você sabe o porquê.
- Vai com calma, Luca
– apazigua Renan.
- Não sei. Por quê? –
pergunta o traficante, sem se alterar, apenas intrigado.
A aparente docilidade
de Menininha inflama Luca:
- E aquele papo de "da pura" e o caralho? É a mesma merda que já tinha me empurrado antes.
- Ué, me disseram que
era boa.
Luca respira fundo,
contendo o ímpeto violento. Menininha tenta se justificar, um pouco vacilante:
- Olha, eu nem uso...
o que você quer que eu faça?
- Me dá o do bom! –
levanta a voz Luca.
- Psss... fala baixo.
Não tenho outro – aflige-se Menininha.
- Porra, se não vai me
dar outro, devolve a merda da grana, vai!
- Escuta, o dinheiro eu
já usei, ou melhor, vou usar.
- Como assim?
- Com a minha
namorada.
- Haha... Ouviu Renan?
Dá pra levar a sério?
Renan sorri amarelo,
louco para ver-se livre daquele disparate de situação, porém Luca parece prestes
a perder de vez o respeito pela singela figura do submundo:
- Namorada é o
caralho! Essa não convence nem a tua mãe. Sei qual é o seu
negócio – faz alusão a um pênis com as mãos.
Pálido e com os olhos marejados,
Menininha suplica:
- Passa outro dia, por
favor.
Luca empurra o traficante,
agitando-lhe os fios delicados do cabelo e derrubando uma cadeira da Skol. A
agitação desperta o povo ao redor. Um homem atravessa a rua em direção ao
conflito e se faz notar:
- Ô playboy!
Renan percebe a
aproximação de curiosos e se apavora.
- Porra, Luca! Olha aí
a merda.
Mas o alvo era mesmo
Luca, logo cercado por quatro homens, e desafiado pelo estranho que atravessara
a rua:
- Vai tirar com o
Menininha na quebrada dele, palhaço? Treta cum
nóis – dito isso, desfere uma cabeçada que desnorteia o rapaz.
A solidariedade com o
traficante faz insurgir a patuleia formada por bebuns e
traficantes. Para infelicidade de Luca, todos bem maiores que Menininha.
Enquanto o pau come, Renan observa o pivô da discórdia caminhar até o balcão do bar, pedir uma fanta uva e voltar à mesa de canto para desenhar, alheio ao tumulto.
Aliás, a modalidade agora era chute no corpo do rapaz jogado na poça. Qualquer
um podia entregar-se à atividade. Os golpes foram suficientes para Renan desistir
da festa e chamar uma ambulância. A noite dos dois, que mal chegara a começar, termina
no Pronto Socorro.
- Devia ter aceitado o
desenho, tomado uma fanta-uva, chamado ele de padrinho, sei lá.
- Renan, eu tô levando
pontos, reparou? Dá pra calar a boca?
- Ih, rapaz! Agora
fodeu! – alerta Renan, correndo para aumentar o som da TV do quarto.
Um programa exibe
matéria sobre a agressão na rua Paim. Enquanto se lê na legenda: CARLOS MENININHA, O BANDIDO ANGELICAL QUE ATRAI PROTEÇÃO, o apresentador Datena vocifera:
- Eu peço licença para mostrar a vocês imagens da mais pura barbárie. Não
dá pra chamar de outra coisa: é barbárie mesmo! Isso aconteceu agora há pouco,
na Bela Vista. O indivíduo conhecido como Carlos Menininha tá ali atrás, fingindo
que não é com ele, reparem. Esse bandido entra e sai da cadeia, tá sempre
metido em confusão e por trás da carinha de anjo está um monstro, um parasita da pior espécie. É essa fragilidade, esse ar de coitadinho, que atrai a proteção
dessa corja aí, chutando um pobre coitado, um infeliz rolando na
poça feito uma ratazana gorda. Coitada da mãe que vê isso e... – Renan muda o canal.
- O cara é sinistro
mesmo, hein, Luca?!
- Renan, você não tem
mais nada pra fazer? O rolé acabou. Pode ir pra casa.
Renan aproveita a
saída do enfermeiro para colocar diante do rosto costurado do amigo um papel
amassado que acabara de tirar do bolso.
- Olha o que ele me
deu quando a gente saía.
- Que porra é essa?
- Não reconhece?
Mesmo com apenas um
olho bom, Luca se reconhece no desenho, bem realista por sinal, de um homem
caído na poça, chutado impiedosamente por quatro homens.
- Não é possível!
- E ele fez isso muito
rápido, pois seu massacre durou quase nada.
- E você não fez nada?
Nem xingou o filho da puta fanfarrão?
- Tive vontade de dar
um pirulito pra ele.
- Eu vou pegar esse
viado de porrada! E o Datena vai ter que mostrar na TV!
- Calma, ele nem
cobrou pelo desenho.
- Ah, que gracinha da
parte dele.
- Acho que ele
simpatizou comigo, Luca. Disse pra eu voltar outro dia.
- Pra quê?
- Prometeu colorir o
desenho. Diz aí Luca, você que saca de submundo como ninguém, isso pode ser
algum código? Ok, sem stress, cuidado com esses pontos aí.
*Ilustração de Ricardo Coimbra
*Ilustração de Ricardo Coimbra
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