- Onde eu tava com a cabeça quando embarquei nessa?
- Estava com a cabeça na bufunfa, queridinho.
-Queridinho?! O que houve com você, Cardoso? Só porque da noite para o dia assumiu que é gay vai passar a falar desse jeito? Se olha no espelho! Um senhor de bigodes!
- Ai como você é veeeelho, Armando. Eu sempre tive o mesmo jeito de falar. É que com você precisei ter outra... digamos... postura! Aliás, todo mundo precisa ser meio careta ao seu lado. É fato. Pensa bem, te dei várias pistas. Lembra das minhas assaduras de fundo emocional? Pois é. Só você pra acreditar nisso.
- Que nojo! Cardoso, eu nunca fui preconceituoso, você sabe. Quando você me chamou para ser sócio nessa loja de coisas... hum, fálicas, eu estranhei, mas levei a sério o potencial do negócio. Afinal, o que mais tem em São Paulo é viado e engraçadinho descolado. Enfim, cliente não ia faltar. Só que agora você decidiu jogar merda no ventilador, né?
-Não são coisas fálicas, Armando. É piroca mesmo. Cacete. Rola. Jeba!! Shampoo, chocolate, pasta de dente, tubo de chantilly, biscoito para cachorro e tudo que se possa imaginar no formato de um latejante caralho! Entendeste agora?
-Fala baixo! Olha o cliente aí.
Uma menina cadavérica e um gordinho de topete laranja entram na loja. Os dois parecem encantados com a variedade de produtos disponíveis. Após uma rápida olhada nos cosméticos, vão para o setor de comestíveis. Entre cochichos, o gordinho comenta com a amiga:
-Não te falei? É tudo em formato de pinto. Esses caras são geniais. Leu a entrevista de um deles para a revista Negócios SP? – A menina balança a cabeça afirmativamente e lança um olhar simpático para Armando e Cardoso, estáticos atrás do balcão.
Com passinhos curtos, o gordinho se aproxima dos dois e desabafa:
-Amei a loja. Vocês têm a cara de Sampa. Tipo... uma cidade assim... de pessoas corajosas, empreendedoras, que dão a cara para bater, que se assumem de ver-da-de. Ai, desculpa... tô sendo chato? Tô falando demais? Então...
Armando, com um sorriso melancólico, sentia o estômago revirar à medida que o gordinho perdia o fôlego. Não tinha porque ser admirado, refletia. Afinal, montara esse negócio esdrúxulo com Cardoso, até então um machão convicto, porque parecia uma forma bem-humorada de levantar dinheiro para abrir seu escritório de consultoria financeira. Não estava em seus planos ser alçado à categoria de personalidade gay. O fato é que após a entrevista de seu sócio, todos achavam que ele e Cardoso formavam um casal, concluía com horror.
Alheio às preocupações de Armando, Cardoso gentilmente mima os visitantes:
-Ai, imagiiiina. Vocês é que fazem o sucesso da loja. Fico é contente em saber que não vivemos mais numa era tão careta, sabe? Vocês não viveram na ditadura, nem sabem como era... Bom, deixa eu mostrar para vocês umas novidades. Já viram estes fantoches? É para teatrinho de adultos, ok? Nada de dar para a sobrinha. Rárárárá...
Armando se contorcia. Porra! O Cardoso era um funcionário público salafrário que mamava nas tetas da ditadura. Como pode ser tão cínico? – se questionava, cada vez mais moralista.
A menina, menos deslumbrada, muda de assunto:
-Meu, como vocês conseguiram tantos produtos nesse formato? Deve ter um milhão de paus espalhados por aqui – Todos riram, menos Armando.
-Se-gre-do. Eu sou um businessman, né gente?! Tenho muitos contatos. – respondeu Cardoso, com as mãos na cintura, mais afetado do que nunca.
Antes de ir embora, o gordinho comprou um pênis de chocolate meio amargo para presentear um colega de trabalho hetero. “Só de zoação”. Armando pensou em como o sucesso da loja estava associado ao crescimento do consumo irônico. Todo mundo vive colocando malícia infantilóide nas coisas. Odiava essa turminha irreverente. Se sentia deslocado naquele ramo, apesar das boas vendas. E para completar, a fanfarronice do sócio, estampada em uma revista de grande circulação, o deixara realmente puto.
-Olha para isso, Cardoso! Todos pensam que somos um casal! Eu devia te cobrir de porrada, mas acho que você vai é gostar...
-Vou mesmo. Agora fica calmo, pensa comigo: a entrevista foi uma grande jogada de marketing. A confissão de minha homossexualidade é só um detalhe. Pouco importa. O importante é que o interesse pela nossa vida privada vai atrair mais e mais clientes.
-Jogada de marketing é o caralho! Você sempre foi um enrustido e aproveitou os holofotes para sair do armário. Só não precisava mentir a meu respeito.
-Não coloque palavras na minha boca. Eu não disse nenhuma mentira.
-Não disse? Vou ler o maldito trecho para refrescar sua memória: “Não nego minha homossexualidade, já o meu sócio é bastante discreto. Jamais faria uma confissão dessas. É um direito dele. Mas posso revelar que a empatia entre nós, torna o sucesso da loja mais consistente. Quando a gente se une a alguém que gosta, o resultado é sempre feliz...”. E por aí vai... puta que o pariu!! Se isso não é chamar alguém de viado publicamente, eu não sei o que é!
-Desencana, Armando. Somos personagens da vida paulistana. Estamos sujeitos a fofocas. Vai por mim, isso é bom para o negócio.
-Vai falar isso para a Dulce! Por mais que eu repita a ela que nunca tive um caso com meu amigo de infância, ela sempre ficará desconfiada. Meus amigos do boliche agora acham que eu mordo a fronha desde criancinha.
-Nossa! Eles pensam isso? Será que é porque você abriu uma loja de caralhos chamada Here comes the fun no meio da rua Augusta? Ou será por motivos mais secretos? Conta pra mim, Mandinho.
-Dobra tua língua, safado! Só dei essa bandeira toda porque achei que nossa parceria renderia grana. Mas não era esse tipo de “parceria” que eu tinha em mente. Você vai se retratar publicamente!
-Ora, não delira. Depois sou eu que tenho mania de grandeza. O que está feito está feito. A Dulce que se lixe. Se te trata desse jeito é porque não merece você.
-Vou te mostrar o que VOCÊ merece. – Armando empurra Cardoso com violência sobre uma mesa repleta de velas em forma de pênis. Várias se quebram no chão.
Cardoso levanta possesso com a atitude do sócio:
-Aaaahhh! Ficou doido? Olha o prejuízo, seu mané! Essas velas são importadas do Brunei!
-Eu vou quebrar cada falo desses na tua cabeça até você ir se explicar com a Dulce e com o jornal.
-Rárárá. Não seja patético! Você acha que eu deixei de ser homem porque me assumi? Te quebro a cara se encostar em mais alguma mercadoria. Experimenta!
-Vamos ver.
Armando tenta dar um soco em Cardoso, mas é surpreendido pelo sócio, que amortece o golpe e o imobiliza. Roxo de raiva, Armando vocifera:
-Bicha escrota! Esse é o braço que tem um pino, espera até eu te pegar com o outro. Arrrgggh.
-Eu fiz aulas de defesa pessoal, sabia!? Agora, fica calminho, nenê.
Dulce entra na loja e presencia Cardoso dando uma gravata em Armando. Transtornada, se despede sem avaliar a situação:
-Como fui idiota em querer me meter na relação de vocês. TCHAU, Armando!
Cardoso solta o amigo e ele corre para a porta.
-Dulce!
Armando tenta perseguir sua namorada porém é puxado de volta para dentro da loja.
-Eu não acredito! Você quer me deixar puto mesmo, pois então ago... – Aflito, Cardoso o interrompe.
-Shhh! Olha ali.
-Oi?
-Não tá vendo? Encostados no carro ali. Um bando de carecas! E tão armados, pode acreditar! Esses caras tão afim de confusão, Armando. Vamos fechar a loja. Chama a polícia!
-Ora, vai se foder! Eu vou atrás da Dulce. Cadê sua defesa pessoal agora? Tomara é que te comam na porrada mesmo.
-Cuidado, Armando!
O crânio de Armando é golpeado com um cano de alumínio, enquanto o sócio é arrastado para os fundos da loja. Nos fundos, entre um insulto e outro, Cardoso leva uma surra impiedosa. Pior sorte teve o inconsciente Armando. Atirado no chão, não pode se defender de vários pisões na cabeça. O sangue saía pela boca, pelos ouvidos, pelo nariz e lhe empapava os cabelos.
A entrevista para a revista Negócios SP tornou-se irrelevante. Nos dias que se passaram, Cardoso experimentou uma fama muito mais consistente. Manchetes denunciavam a violência sofrida por ele e o amigo, grupos gays pediam justiça, a população repudiava a existência de jovens neo nazistas e a discussão fervia em tudo quanto é canto. Mas infelizmente, o nome mais citado era o de Armando Queiróz, que não resistira aos ferimentos e agora era alçado à condição de mártir da causa homossexual.
Mesmo com menos dentes na boca, Cardoso convoca órgão de imprensa para soltar o verbo:
-Gente, isso passou do limite! Não foi um ato cometido por alguém que ganhou um pinto de chocolate e não gostou, entendem? Esse tipo de reação não cabe mais nos dias de hoje. Eu vivi os anos de ditadura, sei como era terrível. Parece que a repressão está de volta! Meu companheiro está morto e essa tragédia tem que servir para discutirmos mudanças na maneira de enxergar o público LGBT. Chega de reclusão e intolerância!
Dulce prefere se recolher. Cardoso vira a viúva oficial de Armando. Fica em evidência durante alguns meses, aparece no programa de Luciana Gimenez na TV, mas aos poucos some da mídia.
Seis meses depois, Cardoso reaparece. Agora à frente de um movimento gay, decidido a emplacar um pacote de leis municipais à favor do direito dos homossexuais manifestarem sua opção sexual em locais públicos. Também pediam punição específica para atos que infligissem tais direitos. O pacote de leis, aprovado pela câmara, é batizado com o nome de Armando Queiróz, mas popularmente é conhecido como Lei Arco Íris.
Ao repórteres, Cardoso declara emocionado:
-Esse é o ato final. Seja onde estiver, agora Armando está mais feliz. Descanse em paz, meu amigo.
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4 comentários:
achei esse seu texto importantíssimo para a causa homossexual.
Uma típica crocodilagem gay paulistana.
enquanto isso... Armandinho revira no túmulo, coitado.
Um amigo meu pediu para perguntar o endereço da loja...
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