quinta-feira, 31 de julho de 2014

Meu tio comeu o Chico Buarque


A plateia majoritariamente feminina do Anfiteatro Radamés Pires suspira, lamentando pelo fim da sessão de perguntas ao mestre e escritor Amadeu Mello, acerca de seu estudo sobre Chico Buarque, em evento que celebra os 70 anos do artista.
   
- Minhas caras e meus caros, devemos estar alertas contra debates sustentados por inteligências aeradas, pois isso só serve para acirrar o Suflair Ideológico. Lembrem-se disso. Passo a palavra ao professor Abyacir Cordeiro.

Em meio a palmas entusiasmadas, o professor Abyacir, à vontade como mestre de cerimônias, sobe ao palco para dar prosseguimento ao evento.

- Quem quiser saber mais sobre o trabalho de pesquisa Aspectos Interdisciplinares de Chico Buarque e a Ressignificação da Epistemologia Pós-Estruturalista no Discurso Feminista Luso-africano, pode acessar o portal da nossa biblioteca. Certo, meu excelentíssimo Amadeu?
- Isso mesmo, querido.
- Agora todos estão convidados para a recepção na sala Pintassilgo. Serão servidas iguarias bem brasileiras em homenagem a esse artista brasileiríssimo que é o Chico. Tem caldo de mandioquinha com taioba, rocambole de marrom glacê e, para arrematar, uma cachacinha de Berimboca dos Ferros, na zona da mata pernambucana. Aproveitem!

É possível escutar a plateia inteira a salivar, exceto por um homem de jaqueta jeans encardida que, de pé na primeira fila, agita os braços, clamando pela atenção do mestre de cerimônias:

- Meu filho, já encerramos as perguntas – lamenta o professor Abyacir.
- Eu sei, mas só queria contar um causo pro nosso mestre.
- Sinto muito.
- É rápido.
- Vamos ouvi-lo – interfere o palestrante, magnânimo, fazendo as pessoas se sentarem novamente - Qual o seu nome, rapaz?
- É Elias, Elias Taboada – olha ao redor, como a conferir se a menção de seu sobrenome provocara algum efeito. Nada de especial além de dois bocejos, um espirro e muita impaciência.
- Pode falar, Elias.
- Bom, não sei se o senhor chegou a ouvir falar do meu tio, o Tenente-Coronel Taboada...

Amadeu Mello nega com a cabeça, cheio de afetação. Elias prossegue:

- Meu tio foi muito respeitado dentro nas forças armadas, lá pelos anos 60. Comandou várias operações no Rio. Não ouviram falar mesmo? Vivia em Copacabana, jogava vôlei de praia…
- Filho, desculpe interromper, mas não vejo a relação disso com o trabalho de pesquisa apresentado. Poderia ser mais objetivo? Nosso estômago tá feito turbina de avião – gargalha Amadeu, gerando palmas entusiasmadas da plateia, igualmente faminta.
- A relação dele é com o Chico.
- Claro, claro… uma relação pouco amistosa, imagino.
- Ao contrário, ele e o Chico eram muito próximos – olha enigmático para os presentes, que mais uma vez se mostram inexpressivos.
- Elias, você tem alguma pergunta a fazer?
- Não, mas se o senhor gentilmente me concedeu a palavra, vai deixar que eu chegue ao fim, certo?

Disfarçando a contrariedade, Amadeu pigarreia e sinaliza para Elias continuar.

- Obrigado, Mestre. Nunca falei sobre o assunto em público porque seria um desgosto enorme pra minha falecida tia. Porém, hoje pertenço a este grupo de estudo, então tenho que trazer à tona que meu tio comeu o Chico. Mais de uma vez, inclusive.

Risadas nervosas na plateia.

- Eu ouvi direito? – indaga Amadeu para o professor Abyacir, congelado em sua fleuma.
- Eu tenho cartas e documentos – tenta emendar Elias. No entanto é abafado pelo ruído das pessoas, divididas entre irritadas, divertidas e  indignadas.

Ligeiramente ressentido, talvez por deixar de ser o centro das atenções, Amadeu retoma a palavra:

- Querido, você não está mais na quarta série, tem até fios grisalhos. Não faça isso com a gente. Pra que ridicularizar o debate tão elevado que tivemos aqui hoje?
- O caso deles não foi nada comparado à relação com a Marieta, admito. Durou pouco tempo, mas foi intenso e explica muita coisa – contemporiza Elias.

Um senhor de olhos divertidos por trás dos óculos levanta-se na segunda fila, interrompendo a conversa:

- Com licença, sou historiador, posso ver a sua pasta de documentos?
- Tá tudo aqui: cartas, fotos... olha, este fantasiado de Bethânia na casa do meu tio é o Chico, pode conferir – aponta uma das fotos e entrega a pasta ao historiador.

Uma estudante de saião indiano e mandala tatuada na parte de trás do ombro também resolve se meter:

- O Chico é uma rara voz masculina a insurgir contra o patriarcalismo vigente. Ao colocar a mulher na primeira pessoa, ele revelou o flagelo feminino com nuances sutis e poéticas. Querer desmoralizá-lo é querer desmoralizar todas nós. – desabafa a moça, coberta por um reluzente verniz de dignidade.
- “Desmoralizar” por quê? Tio Taboada era muito bonito, inclusive várias mulheres passaram pela mão dele. E famosas! Tipo a Maysa, a Emilinha... dizem que até a Leila Diniz.
- “Passaram pela mão”? Peço respeito às mulheres presentes. Misoginia aqui, não! – intromete-se uma senhora, com pinta de professora de ensino fundamental disciplinadora.
- Senhora, eu digo  mulheres, mas coloco na conta homens também, tipo o Chico.
- Chico foi homem o bastante para desafiar o regime! Recolha-se à sua insignificância e retire-se! – ordena a moça da mandala tatuada, obscurecendo o ar digno.
-Não sem antes experimentar o caldo de mandioquinha! – retruca Elias.

O professor Abyacir acha conveniente intervir:

- Por favor, não transformem nosso anfiteatro em um ringue.
- Professor, me admira o senhor e o mestre Amadeu darem espaço pra esse idiota vir aqui tumultuar, exaltando um milico de merda – sai do sério de vez a senhora disciplinadora.
- Vou ignorar a ofensa porque vocês foram educadas a subestimar militares. Porém eles não eram os ignorantes que todo mundo pensa. Tinham contato com artistas e entendiam sim os versos do Chico – explica Elias, domando parte das moças exaltadas com sua serenidade.

Uma terceira mulher, de longos dreads e bata africana, usa de sarcasmo para hostilizar Elias:

- Acha que vai impressionar alguém aqui com piadinha de vestiário masculino?  Volta pra tua tumba, reaça!

Amadeu e Abyacir imploram às pessoas que dirijam-se à sala Pintassilgo, mas o bate-boca continua, para deleite da turma ao fundo do anfiteatro, mais a fim de ver o circo pegar fogo.

- Vocês são muito engraçadas. Só defendem minorias até descobrir que o ídolo de vocês foi violado? E ainda me chamam de reaça...?! – desdenha o sobrinho do Tenente-Coronel Taboada.

Um jovem rapaz se levanta das fileiras do meio para também se manifestar:

- Como homossexual, repudio muito a postura preconceituosa da plateia. Que mal há no Chico ser gay?
- Até que enfim alguém sensato – alivia-se Elias -  Homofobia é um bagulho que me revolta.

Libertando-se da gelatina da omissão, Amadeu busca apaziguar os ânimos, já que a tentativa de ignorar Elias falhara:

- Por favor, meu rapaz, não se trata de preconceito... Você tem o direito de falar o que bem entende, só abomino provocação barata. Conta sua história até o fim para vermos se faz algum sentido.
- Mestre, tô tentando dizer que há muita passionalidade na história do Chico com o meu tio. – vira-se com ar professoral para as moças com quem discutira - Para o bem e para o mal, minhas caras.
- Prossiga.
- Tio Taboada amava as músicas do Chico e se esforçou muito para dobrar os outros fardados, que entendiam perfeitamente as letras de protesto.
- Como assim?
- Ele evitou o exílio do Chico por muito tempo. Mas claro que não foi só por amor à música. Teve cu no meio também, aí já viu, né?!
- Você está sendo chulo e ignorante – retruca Amadeu, tendo em seguida que conter nova insurgência feminina - Shhh... gente, silêncio, por favor. Ele vai concluir.
- Não sou ignorante. O Chico só se exilou quando perdeu o apoio do tio Taboada, mas ele mesmo provocou isso.
- Não entendi.
- Chico dedicou várias musicas ao meu tio, mas uma em especial desceu quadrada.
- Qual? – pergunta Amadeu, com a curiosidade atiçada.
- Retrato em Branco e Preto. Foi feita depois que a Marieta descobriu o caso dos dois. Ali tem várias referências à vida íntima com meu tio.
- Essa música é belíssima.
- Meu tio não achou. Se sentiu exposto, aí o Chico teve que tirar o time de campo, acalmar a Marieta e tal. Mas a história não acaba aqui.

Amadeu faz uma mesura cínica para Elias permancer à ribalta.

- Quando voltou, Chico fez “Jorge Maravilha” como indireta pro Médici, e atingiu meu tio em cheio.
- Hahaha! Sinto desapontá-lo, mas essa música foi feita pra filha do Geisel.
- Engano seu. Quando o Chico ficava putinho com a indiferença do tio Taboada, dizia que meu tio não passava de uma filhinha do Médici. Daí, por rancor, fez aquele versinho enciumado: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. 
- Eu não sei se me espanto mais com a sua infantilidade ou com a sua audácia, meu caro Elias.

Risadas despudoradas começam a surgir no fundo do anfiteatro. Entretanto, Elias insiste na seriedade do assunto:

- Atacou meu tio por recalque e não segurou a bronca. O romance teve que acabar, apesar das várias cartas escritas pelo Chico, pedindo perdão.

Enquanto Amadeu revira os olhos, o historiador de olhos divertidos, até então alheio à balbúrdia do anfiteatro, reaparece um tanto assustado, um tanto admirado, e opina:

- Com licença, mestre, podemos questionar as consequências práticas da relação do tio do rapaz com o Chico, mas é inegável que ela existiu, e parece ter sido bem profunda.
- Isso é um disparate – grita a moça da mandala tatuada.
- É a letra do Chico mesmo – afirma o historiador, sacando uma das cartas de dentro da pasta - Nessa aqui, por exemplo, ele dizia ao senhor Taboada que amava o exílio, porque podia ficar lá bebendo e fumando o dia todo enquanto aqui no Brasil todo mundo o via como herói.
- Puro despeito – destila mágoa Elias - Meu tio fez o que pode por esse ingrato.
- O Chico é mais homem que vocês todos, simpatizantes da ditadura, corja fascista! – ataca a senhora raivosa.
- Por favor, não vamos transformar isso aqui em uma Comissão da Verdade sobre a sexualidade do Chico – suplica Amadeu.
- O senhor quer ver as fotos? – Elias estende a pasta para Amadeu.
- Não, obrigado. Só quero saber por que diabos eu nunca ouvi falar do seu tio. Se ainda fosse um milico famoso.
- Costumo dizer que ele era uma mistura de Luis I, rei burguês da França, com o Oskar Schindler, que livrou a cara de uns judeus, só que com piroca nervosa, né?! Porque assim fica mais fácil fazer o bem.
- Ainda que ele tenha comido o Chico, não seria suficiente pra ter tanta influência assim.
- Ele tinha um trunfo.
- Qual?
- Segundo meu pai contou, tio Taboada também comeu o Médici.

A ira das estudantes transforma-se em leves apupos de cinismo, enquanto o professor Amadeu abaixa a cabeça, em mais um de seus gestos afetados, e aciona seu fiel escudeiro:

- Professor Abyacir, querido.
- Pois não, mestre.
- Traz a cachacinha de Berimboca dos Ferros.