quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O sinistro Carlos Menininha


- Afe… não te falei, Renan? Isso é talco!
- Vamos ter que levar só a birita mesmo.
- Hoje eu vou lá. Quero o "du bom" que ele disse que tinha ou meu dinheiro de volta. Já é a segunda vez que o filho da puta me passa a perna.
- Surtou, Luca? A gente atrasado pra festa e você querendo levar navalhada na cara.
- Foda-se! Não vou passar recibo de otário pro Menininha. Mas chego de leve, na conversa. 
- Menininha?
- Sim. Carlos Menininha, um tipinho inacreditável da rua Paim. Vai temer um cara com um apelido desses?! Apesar de ter fama de sinistro.
- Por que o apelido ridículo então?
- Vira esse copo aí.
- Peraí, não vou entrar nessa roubada com você.
- Vai vacilar? Cheirar você queria, ou não?

Presos no trânsito da rua Augusta, Luca e Renan tentam encontrar uma vaga.

- Pele branquinha, cabelo chanel, sardas...  é assim que você descreve a figura sinistra que te vende pó?
- E acho que ele usa rímel, mas aí pode ser meu cérebro avacalhando.
- Então é um traveco!
- Não é. A roupa, o jeito, é quase tudo de homem. Ele só é meio... uhm... angelical. Tipo uma criança doentia, sabe?
- Um traficante angelical da Paim. É isso?
- Bom, você vai ver. Olha ali a vaga!

Estacionam e vão andando até a Paim, uma rua sem saída tomada pelo lixo, destoante da vizinhança civilizada.

- Rua porca, hein?! Parece que passou um bloco de carnaval por aqui.
- Olha ele lá - aponta discretamente - Na mesa do canto.

Carlos Menininha era fiel à descrição: físico delgado, baixa estatura, quase sumia em meio aos demais. Estava concentrado, escrevendo em um bloco de papel, observado de perto por um casal bronzeado em trajes hippies. Ele termina o que parece ser a caricatura do casal, entrega aos dois, que agradecem, riem um pouco e vão embora satisfeitos. O traficante retribui com a cabeça, ignorando a lenta aproximação de Renan e Luca. 

- Para de rir, Renan.
- Desculpa...  mas eu não consigo. Ele é engraçado demais. Olha esse cabelo lisinho de Cleópatra!
- Shhh... só eu falo agora!

Menininha ergue os olhos para os visitantes. Com cândida solicitude, pergunta:

- Querem que eu faça uma caricatura de vocês?

Renan nota que além das sardas, Menininha possui longos cílios. Luca não se atém a tais detalhes, vai direto ao ponto:

- Não finge que não me conhece - crispa os lábios de raiva - Eu voltei e você sabe o porquê.
- Vai com calma, Luca – apazigua Renan.
- Não sei. Por quê? – pergunta o traficante, sem se alterar, apenas intrigado.

A aparente docilidade de Menininha inflama Luca:

- E aquele papo de "da pura" e o caralho? É a mesma merda que já tinha me empurrado antes.
- Ué, me disseram que era boa.

Luca respira fundo, contendo o ímpeto violento. Menininha tenta se justificar, um pouco vacilante:

- Olha, eu nem uso... o que você quer que eu faça?
- Me dá o do bom! – levanta a voz Luca.
- Psss... fala baixo. Não tenho outro – aflige-se Menininha.
- Porra, se não vai me dar outro, devolve a merda da grana, vai!
- Escuta, o dinheiro eu já usei, ou melhor, vou usar.
- Como assim?
- Com a minha namorada.
- Haha... Ouviu Renan? Dá pra levar a sério?

Renan sorri amarelo, louco para ver-se livre daquele disparate de situação, porém Luca parece prestes a perder de vez o respeito pela singela figura do submundo:

- Namorada é o caralho! Essa não convence nem a tua mãe. Sei qual é o seu negócio – faz alusão a um pênis com as mãos.

Pálido e com os olhos marejados, Menininha suplica:

- Passa outro dia, por favor.

Luca empurra o traficante, agitando-lhe os fios delicados do cabelo e derrubando uma cadeira da Skol. A agitação desperta o povo ao redor. Um homem atravessa a rua em direção ao conflito e se faz notar:

- Ô playboy!

Renan percebe a aproximação de curiosos e se apavora.

- Porra, Luca! Olha aí a merda.

Mas o alvo era mesmo Luca, logo cercado por quatro homens, e desafiado pelo estranho que atravessara a rua:

- Vai tirar com o Menininha na quebrada dele, palhaço? Treta cum nóis  – dito isso, desfere uma cabeçada que desnorteia o rapaz.

A solidariedade com o traficante faz insurgir a patuleia formada por bebuns e traficantes. Para infelicidade de Luca, todos bem maiores que Menininha. Enquanto o pau come, Renan observa o pivô da discórdia caminhar até o balcão do bar, pedir uma fanta uva e voltar à mesa de canto para desenhar, alheio ao tumulto. Aliás, a modalidade agora era chute no corpo do rapaz jogado na poça. Qualquer um podia entregar-se à atividade. Os golpes foram suficientes para Renan desistir da festa e chamar uma ambulância. A noite dos dois, que mal chegara a começar, termina no Pronto Socorro.

- Devia ter aceitado o desenho, tomado uma fanta-uva, chamado ele de padrinho, sei lá.
- Renan, eu tô levando pontos, reparou? Dá pra calar a boca?
- Ih, rapaz! Agora fodeu! – alerta Renan, correndo para aumentar o som da TV do quarto.

Um programa exibe matéria sobre a agressão na rua Paim. Enquanto se lê na legenda: CARLOS MENININHA, O BANDIDO ANGELICAL QUE ATRAI PROTEÇÃO, o apresentador Datena vocifera:

- Eu peço licença para mostrar a vocês imagens da mais pura barbárie. Não dá pra chamar de outra coisa: é barbárie mesmo! Isso aconteceu agora há pouco, na Bela Vista. O indivíduo conhecido como Carlos Menininha tá ali atrás, fingindo que não é com ele, reparem. Esse bandido entra e sai da cadeia, tá sempre metido em confusão e por trás da carinha de anjo está um monstro, um parasita da pior espécie. É essa fragilidade, esse ar de coitadinho, que atrai a proteção dessa corja aí, chutando um pobre coitado, um infeliz rolando na poça feito uma ratazana gorda. Coitada da mãe que vê isso e... – Renan muda o canal.

- O cara é sinistro mesmo, hein, Luca?!
- Renan, você não tem mais nada pra fazer? O rolé acabou. Pode ir pra casa.

Renan aproveita a saída do enfermeiro para colocar diante do rosto costurado do amigo um papel amassado que acabara de tirar do bolso.

- Olha o que ele me deu quando a gente saía.
- Que porra é essa?
- Não reconhece?

Mesmo com apenas um olho bom, Luca se reconhece no desenho, bem realista por sinal, de um homem caído na poça, chutado impiedosamente por quatro homens.

- Não é possível!
- E ele fez isso muito rápido, pois seu massacre durou quase nada.
- E você não fez nada? Nem xingou o filho da puta fanfarrão?
- Tive vontade de dar um pirulito pra ele.
- Eu vou pegar esse viado de porrada! E o Datena vai ter que mostrar na TV!
- Calma, ele nem cobrou pelo desenho.
- Ah, que gracinha da parte dele.
- Acho que ele simpatizou comigo, Luca. Disse pra eu voltar outro dia.
- Pra quê?
- Prometeu colorir o desenho. Diz aí Luca, você que saca de submundo como ninguém, isso pode ser algum código? Ok, sem stress, cuidado com esses pontos aí.


*Ilustração de Ricardo Coimbra