terça-feira, 19 de julho de 2011

Acácio não sabe mentir


De roupão, Acácio desce as escadas de casa. O cunhado Hamilton e a esposa Lili o aguardam no portão.

- Que surpreeeesa!
- E aí, Acácio, tudo bem?
- Firmeza! Peraí, vou segurar a Peteca pra ela não pular em vocês.
- Imagina, deixa a Peteca solta.
- Pronto, é só destrancar.
- E então, meu rapaz?! Achou que a gente ia te abandonar só porque minha irmã viajou? Olha, até trouxe umas Heinekens.
- Ahhh… eu te amo, Hamilton! Devia ter casado contigo, não com sua irmã. Hahaha!
- Ainda tá em tempo. Hahá!
- Não reparem na bagunça! Tudo bem contigo, Lili? E os meninos?
- Xiii... dando a canseira de sempre, Acácio. E você? Muito sozinho sem a Bia?
- Ah, eu tento me distrair né?! Vejo uns filmes, tomo um chopp com o pessoal do trabalho quando dá, mas fica um vazio danado.

Hamilton e Lili se acomodam na sala. O interior da casa é o retrato do abandono: copos sujos espalhados, cinzeiros transbordando, folhas secas trazidas por Peteca acumuladas nos cantos, além de uma grossa camada de poeira cobrindo chão e móveis, denunciando a economia com faxina. O ambiente lembra mais uma toca do que um lar.

- Pegamos você saindo do banho. Vai lá se vestir enquanto coloco as cervejas pra gelar.
- Tá. Já volto.

Minutos depois, Acácio retorna sem perder o rumo da conversa:

- Hamilton, Hamilton... sem sua irmã a vida fica difícil demais. Minha barriga até diminuiu.

Taciturno, Hamilton observa de perto um enorme arranjo de flores sobre a mesa de centro. O enfeite destoa da impessoalidade dos objetos da casa e do estilo desleixado de Acácio. Sem encarar o cunhado, Hamilton vai direto ao ponto:

- Tô vendo. O que é isso aqui, Acácio? Andou ganhando flores?
- Oi?

Acácio se aproxima mansamente. Por cima do ombros de Hamilton, espia as flores com atenção, como se jamais tivesse reparado nelas. A afetada tentativa de ganhar tempo fica evidente.

- Pois é... tive essa ideia outro dia. Quis me presentear. Levantar um pouco a auto-estima, sabe?! Todo homem gosta de ganhar flores, não sabiam? – Acácio aguarda pelas risadas que não vêm. Sequer um sorrisinho por educação. Silêncio sepulcral na sala.

Hamilton mantém os olhos nas flores. Lili desvia o olhar para a janela, parece tensa, como se aguardasse pelo pior. Surpreso com o climão, Acácio busca refúgio em Peteca.

- Mas minha alegria nos últimos tempos tem sido essa cadela. Virou a atração da rua! Muito mais popular que eu. Hehe! Vem cá, menina!

Peteca não se solidariza. Como legítima fêmea, também parece desconfiada. Talvez tenha visto algo que roprovara nos últimos dias ou quem sabe seja apenas um enfastio de cadela sonolenta. Independente do motivo, Peteca ignora seu dono.

- Você ganhou essas flores de uma mulher, não foi?
- Não, Hamilton. Por que essa fixação?
- Talvez porque minha irmã seja obcecada por você. E algo assim ela não iria suportar.
- Pois ganhei as flores do… por um trabalho bem feito. Lá na firma. Meu chefe Getúlio mandou entregar. Algum problema?
- Ah, você ganhou flores de um homem então?
- De um homem não. Do meu chefe! Lá vem você de novo com desconfianças.
- É porque eu conheço muito bem o Getúlio e sei que ele não é esse tipo de cara.
- Agora você conhece meu chefe?
- Claro, Acácio! Eu que te indiquei pra ele! Esqueceu? Você tá estranho.
- Estranhos são vocês.

Lili sai da letargia ao ser acusada:

- Opa, não me coloca nessa história. Vocês homens se conhecem bem. Devem perceber quando o outro está mentindo.
- Até você? Qual a treta, afinal? Fala, Hamilton!
- Você não sabe mentir, Acácio.
- Não enche.

Hamilton se cala. O ar ofendido do marido desperta a fúria de Lili.

- Precisa ser grosso? Hamilton tá desconfiado porque não quer ver a Bia sofrer. Ela já passou por poucas e boas, você sabe bem disso! Além do mais, quer saber? Sua casa tá imunda, a pia cheia de louça suja... e ainda vem dizer que adora a cachorra, mas deixa ela sem água e comida na tigela. Pensa que eu não reparei? - sem respirar, Lili retorna ao centro da polêmica - Porém você se deu ao trabalho de colocar essas flores bregas em um vaso no meio da sala. Decidiu enfeitar esse pardieiro, Acácio? Ora, tenha dó!
- Em primeiro lugar, dálias são bonitas e não têm nada de bregas. Em segundo lugar… bem… vocês sabem que tô passando dificuldades aqui…
- Sem drama, Acácio. Tá sabendo muito sobre flores pro meu gosto - espezinha Lili.
- Lili, meu anjo, você e seu marido saíram lá do Cambuci só pra me espionar?

Agora é Lili quem se cala, assumindo postura ofendida. Hamilton a envolve com os braços.

- Vambora, Lili. Antes que a coisa piore.

Com agilidade, Acácio se coloca entre a porta e os visitantes.

- Hamilton, peraí! Vamos falar sério agora.
- Vamos embora, Hamilton. Por favor!
- Só um minuto, Lili.Vamos dar uma chance para o Acácio se explicar.
- Hamilton, não imagina coisas, vai! Encher a cabeça da sua irmã nesse momento seria muita crueldade, você sabe! - desespera-se Acácio.
- Eu sei, Acácio. Ela já passou por poucas e boas. Não merece mais essa. Mas eu também tô sob uma pressão terrível, meu amigo.
- Como assim?
- Curto e grosso, Acácio? Não tenho como lhe pagar aquele empréstimo. Os juros acumularam demais e meu restaurante continua na pior.
- Mano… Quer que eu esqueça a dívida? Aí complica né?!

Lili não se segura:

- Hamilton, o que é isso? Não tô te reconhecendo!
- Peraí, Lili! Hamilton, investi demais no seu restaurante. O máximo que posso fazer é um abatimento. Faria isso pela Bia, que já sofreu demais e não merece saber, inclusive, que o irmão não se veste de mulher somente no carnaval.
- Oi?
- Nem ela, nem o povo da sinuca, do boliche, da academia... ninguém merece saber sobre suas intimidades. Concorda?

Hamilton fica lívido, enquanto Lili suplica:

- Hamilton, vamos embora! Tô te pedindo!
- Que foi, Hamilton? Nem lembra que me contou né?! Você tava bêbado, confuso, mas eu lembro de tudo: disse como o assunto era complexo, mal compreendido pela sociedade. Falou até da Grécia antiga. E eu entendi perfeitamente a sua condição de… como chama mesmo? Crossdresser! Há! É isso! Você é crossdresser, Hamilton!
- E você é doido! Um doente mental! Só pode ser.
- Ué, então por que a Lili ficou calada? Nem te defende, parece conformada. Parabéns pela mente aberta.
- Você não tem como provar nada - retruca o cunhado, com a voz um pouco falhante.
- E você tem? Jogo fora agora as flores que ganhei da minha tia Dulce. E aí?
- Descarado! Mente três vezes sem nem piscar! Coitada da minha irmã!
- Você disse que eu não sei mentir. Então tanto faz - dá de ombros Acácio.

Agora em desvantagem, Hamilton respira fundo e abaixa o tom:

- Só contei isso porque achei que você também tivesse bêbado. Me abri com você. Confiei!
- Pode desabafar sempre que quiser. Não sou só seu cunhado. Somos amigos! Respeito sua privacidade, não tenho preconceitos, e por isso da minha boca não vai sair nada. Conto também com sua discrição - sorri para o cunhado - Afinal, o bem da Bia vem em primeiro lugar, certo?
- Certo.

Lili permanece indignada:

- Vocês são podres!
- Hamilton, vou abrir uma Heineken pra gente brindar à Bia! No que depender de mim, ela só vai ter felicidade nessa vida.
- De mim também. Ela já passou por poucas e boas.
- E vamos falar também sobre aquele abatimento esperto. Pensa que eu esqueci? Lili, brinda com a gente?
- Vai se foder.