quinta-feira, 9 de abril de 2009

Caranguejo

Juiz de Fora - MG, 1986.
Dentro do sacolejante ônibus escolar, Natanael, de sete anos, era um dos mais miúdos. E o jeito tímido e assustadiço tornava a vida bem complicada. Em meio a tanta intimidação, tinha uma pessoa que conseguia descontraí-lo. Era um garoto ruivinho, chamado Fabrício, maior entre os maiores, e que estranhamente não se aproveitava do tamanho para obter vantagens. Pelo contrário, era divertido e amistoso. Comportamento intrigante para os garotos menores, que lamentavam com inveja o desperdício de tais atributos físicos. “Eu mastigaria o mundo se tivesse este tamanho”, pensava um deles. Mas Natanael simpatizava com Fabrício. Sobretudo, porque ele conseguia superar em infantilidade os menores. O “gigante” lembrava um personagem de desenho animado, afetado e histriônico.
Quando o ruivinho saltava da poltrona e intimava Natanael para uma “lutinha”, toda a timidez era esquecida. Nesse embate, ao qual sequer encostavam-se, mas simulavam movimentos ameaçadores, os garotos escolhiam identidades imaginárias. Fabrício sempre adotava a mesma: um leão. Após o primeiro rugido, Natanael corria em direção ao grande felino e parava à sua frente movimentando-se lateralmente. Ele também não costumava mudar seu personagem. Ao contrário dos meninos pequenos, que se identificavam com grandes guerreiros ou criaturas mortíferas, Natanael curtia assumir a imagem de um caranguejo: um animal que, embora não pertença ao grupo dos mais perigosos, pode ser traiçoeiro com suas ágeis pinças e seu vagar de trajetória indefinida. Formulava mais ou menos assim seu grau de periculosidade. E aquele confronto chegava às raias do tédio absoluto para quem prestasse alguma atenção. Fabrício rugia e dava patadas no ar como se afastasse moscas. Na verdade, o vaidoso leão mostrava-se muito mais preocupado com a própria imagem do que com seu oponente. Natanael agitava freneticamente “suas pinças” de forma a construir uma barreira intransponível a qualquer predador. A “lutinha” terminava sempre da mesma maneira: O leão vaidoso virava-se, esquecendo-se do caranguejo, e permanecia rugindo de forma autista. Natanael pensava no perigo que era dar as costas assim para o mais perigoso dos crustáceos, mas não ligava. Naquele dia, sentia cansaço e enjoo, intensificado a cada instante pelas manobras estabanadas da motorista, tia Margarete. Recolheu-se à última poltrona para relaxar e acabou deixando a merendeira para trás, no meio do corredor. Sua casa ainda estava distante. Desanimou completamente.
O despertar em meio à escuridão foi medonho. Natanael encarou assustado a fileira de poltronas na penumbra. A luz neón das placas de rua tremulavam dentro do ônibus. Parecia um pesadelo estranho. Beliscou-se. Espichou a cabeça para olhar pela janela e viu uma cena curiosa: uma mulher enorme aliviava-se em um poste, porém o fazia de pé. A tal virou-se e enxergou o olhar atento de Natanael. “Oi, que cê tá olhando? Quer ver como o meu é maior que o seu?” Dito isto, a estranha mostrou o pau, para espanto do menino, que escondeu-se.
De longe vinha o som de um animado pagode. Podia ouvir a batida e alguns gritos entusiasmados. Lembrou-se de um pesadelo recorrente: era noite e homens com horrendas máscaras tribais dançavam à volta de seu corpo amarrado. Quando ele acordava, muito assustado, os sons dos tambores ainda ecoavam em sua mente. Naquele momento, pensou estar preso em mais um de seus pesadelos.
Chorar de nada ia adiantar. Seria melhor sair do ônibus e pedir a alguém que o levasse para casa. Correu até a porta da frente e, para seu terror, ela estava trancada. Esmurrou-a desesperado, gritou por ajuda durante alguns minutos, e nada. A rua estava deserta e o som de seu desespero era abafado pela batucada. Natanael ficou desorientado, jamais experimentara tamanho horror. Como toda criança medrosa, ele temia, mais do que qualquer outra coisa na vida, se perder dos pais. Sem perceber, caminhou até o fundo do ônibus. De lá, em meio às sombras, ouviu a porta da frente abrir-se com um tranco. Emitiu um gemido surdo.
Teve imenso alívio ao ver tia Margarete subir as escadas, porém deteve-se. Atrás dela vinha engatado um moço bem mais jovem sem camisa. Pararam próximo às primeiras poltronas. Naquele instante, o menino sentiu umidecer a parte de trás de sua bermuda. Em pânico, havia se cagado.
O casal estava em um belo amasso. Aquilo tudo era novidade para Natanael. Nunca tinha visto uma teta ao vivo, apesar daquela nem ser das melhores de se ver. Era murcha, caída e com mamilos tipo medalhão. Tia Margarete tentava conter, sem muita convicção, as ávidas mãos do rapaz. “Calma, Guto! Vão ver a gente aqui dentro! Abaixa! Fica no chão, vai!” Então o Guto abaixou o calção e ficou pelado. Em seguida, ele a derrubou no chão. Dava para ver só uma silhueta indefinida dos dois até tia Margarete erguer-se, sentada sobre o rapaz, iluminada feito um arco íris pelas luzes da rua.
Natanael sentia vergonha da sua condição de cagado, que o impedia de ensaiar um pedido de ajuda. Falaria com ela, que poderia rir dele, pensava. Ou pediria ajuda ao cara, um desconhecido que poderia fazer troça pior. A real personalidade de Natanael, covarde e ao mesmo tempo orgulhosa, se manifestava com força. Ele voltaria a sentir tais sensações muitas vezes ao longo da vida. Infelizmente.
Parado no fundo do ônibus, em meio à escuridão, o menino tinha os olhos mais acostumados com a pouca luz. Debaixo de uma poltrona, pouco à frente do casal, conseguiu reconhecer sua merendeira, tombada e esquecida. Levantou depressa. Não podia perder mais uma delas. Já estava na terceira. E o ano mal começara. Sua mãe já o ameaçava com a possibilidade dele levar o lanche dentro de uma sacola de supermercado, caso voltasse a perder merendeiras. Em um instante, esta passou a ser a principal preocupação de Natanael, a ponto de aproximar-se resoluto de tia Margarete, medonha com as tetas balançando de baixo para cima. Ia pegar a merendeira e pedir para lhe levarem de volta à sua casa, depois que terminassem o que estavam fazendo, claro. Podia receber um safanão da fogosa motorista por surpreendê-la sem roupa, mas era preciso agir, pensou.
O menino se esgueirava de cócoras, em direção à merendeira, quando ouviu Tia Margarete comentar: “Aff... Que cheiro de merda é esse?”. “Deve estar vindo lá de fora! Continua aí, porra”, impacientou-se o tal do Guto. Ao ouvir o diálogo, Natanael ficou paralisado no meio do caminho. Foi quando se fez um grande alarido. Alguém chutava a porta do ônibus. Tia Margarete percebeu, tarde demais, que não a tinha trancado.
“Te peguei, cachorrona! Foi para isso que eu comprei esse ônibus? Foi pra tu ficar pagando de puta dentro dela, sua vagabunda?!” Este foi o trecho mais ameno da gritaria iniciada pelo homenzinho de cabeça chata, cuja aparição não era prevista. Natanael percebeu a gravidade do rolo. Tia Margarete urrava feito uma louca, xingando e desculpando-se ao mesmo tempo. O Guto continuou no chão, calado, tentando misturar-se às sombras. O homenzinho então puxou o cabelo da tia Margarete, pedindo-lhe “silêncio, sua vaca”. “O que vai fazer agora? Me matar? Nunca foi homem de verdade! Eu sei da travecada com que tu anda!”. O homenzinho perdeu de vez o controle. Puxou uma faca e a colocou no pescoço dela. Aí o Guto resolveu se mexer. Tentou sair, de quatro, pela porta da frente, mas foi interrompido. Dava para perceber desde o início que o marido chifrado não seria capaz de atentar contra a mulher e, talvez por isso, cravou impiedosamente a faca nas costas do rapazinho fujão. Guto mugiu profundamente. Começou a chorar de dor e nervoso. O homenzinho o atirou para o chão do ônibus novamente. “Tá achando que vai picar a mula assim seu filha da puta?” O corno deu duas bicudas no corpo caído do rapaz.
Natanael avançou novamente e já estava no meio do corredor. Aproveitou a confusão para tentar reaver a merendeira. Porém, uma lingua negra se arrastou em direção à ele. Era o sangue que escorria do corpo de Guto. Natanael olhou com nojo para as próprias mãos, ensopadas de vermelho, mas alcançou o objeto desejado. Sentiu-se mais seguro a partir daquele momento.
Na frente, a gritaria continuava. “Olha esta sangueira, seu cabeça oca dos infernos!”. “Calaboca, que tu tá no lucro de não ser o teu sangue aí no chão”. “Dessa vez você vai para a cadeia e eu não vou fazer na... Putamerda! O que o garoto tá fazendo aqui?” Tia Margarete encheu-se de cólera ao ver o vulto de Natanael agachado ao lado do corpo de Guto. “Responde para mim, seu pivete vagabundo!” Em desespero, o ferido agarrou a perna do garoto, pedindo, "pelo amor de Deus", que lhe prestasse algum socorro. Com uma mão ensanguentada segurando a merendeira e tendo a barra da calça agarrada pelo miserável, Natanael ficou como estátua. Tia Margarete não o reconheceu. E agora?, perguntava-se. Até que o nordestino resolveu intervir. “Vocês não gritem com a criança não, seus desalmados! O coitado tá assustado com a sem vergonhice de vocês.” Dito isto, o corno puxou Natanael pelo braço. O menino não conseguia balbuciar nada, tamanho o susto. Na passagem, a ensandecida motorista ainda disparou: “Foi você que dedurou para ele! Não foi moleque?” Depois da intimidação, levou uma coronhada e foi parar em cima do Guto. Manchada de sangue, ficou em choque. O corno saiu porta afora levando Natanael. Ao olhar para trás e perceber que a mulher ficara cuidando do ferido, não teve dúvida, trancou a porta por fora. Isto provocou novos protestos da traidora. Da rua, porém, os gritos eram engolfados pelo som do pagode da rua de cima, que agora estava em seu clímax.
“Onde você mora, bichinho?”. Natanael só conseguiu falar alguma coisa quando já estava dentro da brasília velha do homenzinho. Foi tratado com muita docilidade; e a calma dele contrastava muito com a histeria de minutos antes. Para o menino, estar cagado dentro do carro não era nada, visto que o motorista cheirava a cueca suja. Não era a mais agradável das atmosferas ali dentro.
Natanael indicou sua casa e foi deixado na porta após despedida apressada do motorista. “Diz para sua mãe que tu não teve culpa de nada. Dorme bem, garoto”. Quando a preocupadíssima mãe irrompeu na porta, a barulheira da brasília ainda ecoava. Ensaiou uma bronca, mas procurou acalmar-se. “Não faça mais isto com sua mãe! O que te fizeram?”. “Eu dormi... acabei fazendo nas calças... não conta pra ninguém”. Natanael foi dormir após um demorado banho. Estava com a bunda assada. Durante a noite, sentiu uma excitação boa. Pensava na melhor maneira de contar aquela história maluca para os meninos do ônibus. Era todo auto-confiança. Não seria mais um caranguejo nas lutinhas, poderia escolher um personagem mais importante para si.
No dia seguinte, o primo mal-humorado de Natanael o levou de carro até a escola. Foi assim até a mãe do menino contratar outro ônibus escolar. A decepção foi grande para o revitalizado garoto, principalmente após constatar que o novo ônibus era frequentado por figuras hostis e mais amedrontadoras. O pequeno afundou-se novamente em sua timidez sufocante e por lá ficou durante toda a infância.